segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Céu não é só para os homens

Sábado. Dia dezasseis. O amigo felpudo e meigo iniciou outra jornada. Partiu sem partir de verdade; guardamo-lo, com vincada vontade, no mais íntimo de nós. Não tive o privilégio de o conhecer tão bem quanto outros, outros esses indubitavelmente os mais queridos do seu coração. Porém, não exagero se disser que também eu firmei laços, que gostava de crer recíprocos, com esta criatura tão única. Guardo dele boas, muito boas, memórias e estas pertencer-me-ão até ao meu derradeiro suspiro. Estimado amigo felpudo, fizeste feliz boas almas que o mereceram, mesmo quando as tuas tropelias aconteciam graças ao teu carácter tantas vezes brincalhão. Levaste uma boa vida, creio que se mo pudesses contar o confirmarias, longa e boa vida. Eu talvez só tenha passado pela tua vida por uns três anos, aqui e ali, quando uma qualquer oportunidade nos conduzia ao encontro. Por vicissitudes da vida, que é assim mesmo, ter-te-ei visto e acariciado pela última vez quando corriam os primeiros tempos do ano de 2010; ou terá sido no último mês de 2009? Pouco importa. Bem se sabe que quantidade amiúde não é tudo. Aceno-te agora o adeus final, recordando como me observavas atento, língua para fora, com os teus belos tiques naturais que faziam ascender ou descer as tuas orelhas. Sempre os apreciei. Como gostavas de apreciar tudo o que te rodeava…
As mais fortes lembranças que para sempre terei de ti levam-nos ao Verão de 2008. Por essa altura estava a tentar terminar a redacção da minha tese, tese que me conduziria ao grau de mestre. Sei que sou descuidado com as horas, que sou pouco ortodoxo quando se trata de horários. Recordo-me sentado no sofá, decorriam as Olimpíadas em Pequim, digitando ao computador aquelas que seriam as palavras com que encerraria a tal tese – sendo que ainda tinha um considerável trabalho pela frente; as últimas são não invulgarmente as mais difíceis, talvez até as mais decisivas. De quando em quando, já a madrugada abraçava o nosso mundo, saía da casa para fumar um cigarro. Ia pé ante pé, não querendo importunar o teu sono. Mas tu, invariavelmente, e fosse como fosse que eu me comportasse, davas sempre por mim, adivinhavas a minha presença. Tal qual uma qualquer inevitabilidade. Raras eram as vezes que fazias barulho, como que se soubesses que a minha presença ali era algo contra a regra, infiltrada e não expectável. Ainda assim ouvia-te saíres do teu sono, começando a percorrer a calçada ao meu encontro. Eu acendia um cigarro. E outro. Via as estrelas e observava a Lua. Tentava desanuviar e aliviar o peso que sentia às costas. E tu, companheiro, vinhas célere mas calmo até mim. Olhavas-me e sentia que me reconhecias. Sempre. Sentavas-te então ao meu lado, quase sempre deixavas o teu corpo descair até que encontrasse as minhas pernas, comportamento que nos fazia sentirmo-nos mutuamente mimados, desejados, queridos, compinchas naquele então. Quando estavas mais cansado e o sono te moía o corpo esticavas-te deitado ao longo do chão, apoiando a queixado num dos meus sapatos. De uma forma ou de outra sentia invariavelmente o teu peso, como invariavelmente sentia que ali contigo jamais estaria sozinho – mesmo que eu buscasse a solidão; como eu te agradeço, mesmo que sem palavras para definir essa gratidão.
Desde o primeiro dia que te vi, Napoleão, ficou-me firme a sensação que tinha deixado em ti uma boa imagem e que tu, a par das pessoas que tão bem me aceitaram no seu íntimo refúgio, me asserias que eu tinha passado o teste e que podia partilhar de uma intimidade com a tua dona. Cheiraste-me, é claro, querias conhecer-me também pelo faro. Não me repudiaste com um ladrar invejoso ou cauteloso, coisas que são diferentes mas que poderiam, ambas, despertar os teus instintos. Foi com à vontade que pela primeira vez a minha mão poisou no teu pêlo. Se eu passei pelos teus testes deve ser dito, em abono da verdade, que ao conhecer-te apercebi-me, facto imediato, que me cativaras. Foi bom conhecer-te, Napoleão. Foi tão bom que me deixasses conquistar de forma tão breve a tua confiança e carinho que após o primeiro encontro sempre demonstraste por mim. Napoleão, não voltarei à despensa para recolher as tuas guloseimas e entregá-las às tuas ávidas mandíbulas. Estava escrito que não mais o faria, mesmo que a tua vida não tivesse sido abruptamente ceifada porque estava a chegar ao fim e ninguém poderia fazer nada que o impedisse. Adorava esses momentos, pulavas para mim adivinhando com a inevitabilidade habitual que carregava um biscoito para ti; por mais que o tentasse esconder tu sabias sempre, com os teus apurados sentidos.
Para mim foste uma estrelinha que me deixava feliz e de boa disposição. Para outros foste uma vida, mais não seja a tua – o que não é dizer pouco. Eras e sempre foste muito querido. Escutava como te falavam, não era difícil de compreender que tu, embora não humano, fosses parte integrante de uma família. Fui contaminado pela tua maneira de ser, o que me levou a adorar-te e a respeitar-te na tua condição de cão quase gente. Não há mais biscoitos. Não há mais brincadeiras de bola. Não voltarei a ver os teus saltos acrobáticos. Não te voltarei a ver a rebolar no chão, carregado de festas e mimos. Lamento que tudo isto não aconteça só porque já não me cabia mais a mim ver-te. Que tenha sido a morte a interromper o ciclo que te estava destinado.
Nós homens somos demasiado arrogantes, é algo visceral. Todos os crentes das grandes religiões inventam espaços para si no pós vida, esquecendo-se que não somos os únicos seres a soprar vida. Eu não sou desses. Nem sou crente. Todavia, se há Céu este será também para ti e para todos os outros que nascem, vivem, reproduzem-se e, quem sabe, amam e, que, por fim terminam padecendo do mal para além da existência que é a morte.
Até já, Napoleão. Lindo.



Lembrando-me de uma menina:

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