terça-feira, 26 de junho de 2012

Fábula. Para graúdos.

Cheguei ofegante e atrasado. A rampa de betuminoso que conduz ao edifício que tanto queria alcançar parecia não ter fim, como nos filmes. Dentro do edifício, outro obstáculo. Dois lanços de escadas para trepar. Passei o computador para a mão esquerda e ajudei o trote com a mão direita a puxar contra mim o corrimão. Os restantes metros eram fáceis. Com todos repentinamente a voltar os seus olhares para mim, entrei na sala.
O músculo cardíaco bombeava sangue a uma velocidade vertiginosa. Porém, sentia que as gotas de adrenalina tinham deixado de pingar e iam, suavemente, deixando de fazer efeito. Começara o processo de recuperação do esforço a que me obrigara. Limitei-me a olhar de frente, fazendo-me por esquecer os rostos que em mim se fixavam com espanto e talvez também com uma atitude de quem pretende repreender. Depressa, contudo, se tornaram mais afáveis para comigo, talvez o meu cansaço tenha despoletado sentimentos opostos àqueles que gostariam de imprimir naquele instante. Seja lá como for.
Vi os teus olhos meigos, ainda que chispados devido a um atraso que vias injustificado e injustificável, cruzarem-se com os meus. Nem soergueste o queixo mais do que os milímetros estritamente necessários para me confrontar. Mantiveste-te profissional, fazendo regressar a tua atenção para com a jovem à tua frente. Profissional. Profissionalíssima. Jamais alguém entendeu que por breves instantes havias quebrado a conexão com a minha colega. Só quando os demais te interromperam é que te dignaste a prestar-me atenção. E não tinhas outra hipótese, eu agora estava ali e tinha todos os outros como testemunhas. Ah, afinal sempre conseguiu vir, colega – brindaste tu com mágoa e desalento, talvez mesmo com umas acendalhas de rancor, evitando sempre, e com um brilhante sucesso, que os demais desconfiassem do laço que nos vai unindo.
Observei a plateia de luxo à qual ia servindo um sorriso mesclado de saudação e de sincero pedido de desculpa pela chegada tão em cima da hora. Percebi, desde logo, que havia perdido a pole position para outros colegas, mas estava longe do meu pensamento resmungar. Aliás, como poderia? Ainda que tivesse manifestado qualquer desagrado sabia que me desintegrarias, primeiro com o teu olhar e de seguida com um discurso ameno, como é teu hábito, mas prenhe de considerações que me embaraçariam até às entranhas – e como tu, melhor do que ninguém, o sabes fazer. Colega, as minhas desculpas por este atraso indesculpável, lamento imenso, um imprevisto… e fiquei por aí, com as palavras a voarem perdidas e inacabadas no ar, até porque nem eu mesmo saberia inventar mais o que acrescentar. Nem valia a pena. Sorriste, sempre impecável com a postura correcta e dada à situação, e nesse sorriso ordenaste-me que me calasse e que tomasse um lugar sem delonga e tentando incomodar o menos possível todas as pessoas que estavam já sentadas nos seus lugares – e tudo isto sem precisares de proferir uma única palavra, imagine-se. Entre os desculpe e obrigado, lá abanquei num lugar miraculosamente vago junto à janela. Expirei o mais fundo que consegui, coisa que não fiz de forma ciente, e pedi ao meu coração que me desse tréguas, cavalgando um pouco menos depressa, e à minha garganta que não fosse tão ríspida comigo, seria o mais célere possível em atribuir-lhe a água por que tanto, e justamente, reclamava.
Agora com o netbook colocado em cima do tampo da mesa recordei-me que na noite pretérita te havia trocado pelo computador. Tentei evitar entrar em conflito comigo mesmo por causa desse acontecimento e por isso girei a cabeça em direcção ao vidro da janela que me apresentava uma paisagem bem distinta daquela que eu percorrera até estar finalmente no interior do edifício. Ia começando a inquietar-me com o sucedido na noite que passara quando a tua voz interrompeu, decidida, o meu raciocínio. Agradeci-te por essa façanha mais tarde, se bem que na realidade nunca to tenha dito. Sobranceira e cândida eras a única pessoa erguida na sala. Todos te olhavam, todos te escutavam, todos bebiam a tua fonética e os teus gestos, delicados como se ensaiados ao pormenor. Estavas bela. És. Finalmente sossegado, com o ritmo cardíaco novamente a funcionar como a mais bem cadenciada das máquinas, a garganta afinada ao detalhe e desprovido de qualquer vestígio de suor que o esforço impusera à minha testa, ao meu pescoço, às minhas mãos e onde mais ele se tivesse instalado. Apurava a audição, já não comprometida pela respiração ofegante e assíncrona de minutos atrás, e ordenava aos miolos que se concentrassem no motivo que me havia trazido ali; obtive cem por cento de sucesso. Todavia, permanecia com o maior dos cuidados, continuava a temer-te. Se tinhas boas razões para não estares de bem comigo, hoje havia-te dado ainda mais, as suficientes para que estivesses honestamente zangada comigo. Cerrei os olhos por uns instantes. Firmei os maxilares um no outro, foquei-me: não havia mundo para além daquela sala.
Apresentaste os intervenientes de maneira tão sóbria e simultaneamente tão dócil que isso te valeu uma valente ovação no final. Confesso, inclusive, que fiquei com uma pitada de ciúme, já sabes como sou. De seguida sentavas-te e escutavas como se te tivessem transportado para um recital de piano e cordas, imperturbável, serena e sempre com o teu sorriso jovial desenhado na face. Quase me distraías, mas também eu nestas circunstâncias sou imperturbável, se bem que nada airoso como tu consegues ser, antes o inverso: nota-se a tensão nas minhas têmporas, os olhos tremendamente sérios coadjuvados por um arqueamento forçado das sobrancelhas, o semblante empedernido como o de uma estátua talhada mais de um milhar de anos antes do nosso tempo. Somos tão diferentes. E tu és sempre mais bela. E eu, eu sou o pragmático, implacável com os erros, próprios ou alheios, o tipo sisudo que serve para aquilo sem que no entanto cative quem quer que seja no que remete para fora desse cenário. Como te cativei? Essa pergunta já rodou o meu cérebro milhões de vezes e nunca encontrei qualquer tipo de resposta satisfatória, nenhuma hipótese inabalável, nenhuma síntese digna de verdadeiramente o ser. Como? Considerado ao contrário, a resposta é tão óbvia que quase roça a suspeita; mas não, é inapelavelmente verdadeira. Ganhaste a minha confiança em segundos, obtiveste a minha simpatia sem que eu me questionasse: bastou-te seres tu. Contudo… e eu? Como agradei o teu olhar, olhar esse que se ancora a uma aguda inteligência e astúcia? Quando to pergunto, enleando ou em proposição directa, sorris e piscas os olhos um pouco mais depressa durante uns escassos segundos. Alguma vez me irás permitir saber? Isto é, saber dizendo-mo tu frontalmente e em palavras que eu consiga interpretar.
O tempo correu depressa, ou pareceu-me que sim. O nível de argumentação era muito bom, superior à média do que já experenciei em vivências lá fora, nalgumas das capitais do conhecimento da Europa. Dignificava a nossa condição, a nossa arte. Tinha ficado, por força das circunstâncias que eu próprio construí através do meu atraso despropositado, com a última posição. Nem por isso verguei ao peso da responsabilidade. Ergui-me e sentei-me com convicção, não cedendo nem exagerando no meu acto encenado. Tracei o meu sorriso profissional – gosto de o chamar assim, pois deposito toda a fé no facto de que mais nenhum dos sorrisos no meu lote de sorrisos é tão sui generis como este – e encarei todos de frente, destemido como um soldado que oferece o peito ao chumbo pela sua pátria, pelos seus valores, pelos seus ideais; e não tombei. Entretanto a tua voz preenchia graciosa o ar daquele espaço. Escutava-te atentamente, falavas de mim, de quem eu era – e sou – numas míseras quatro ou cinco frases não muito alongadas. Estou a ser injusto, sei que procedeste de igual para com os que me antecederam. Estávamos todos condicionados pelo tempo e não eras, nem podias ser, excepção. Evitei ao máximo olhar-te, e fui bem sucedido, enquanto me enquadravas no seio daquele cenário, não fosse a minha máscara dissipar-se e trair sentimentos mútuos, esforcei-me portanto por transparecer uma concentração real e credível face a todos os que assistiam. Iniciei e terminei com total ausência de sobressaltos. Talvez até com uma certa ausência de mim. Talvez, não. Indubitavelmente. O comportamento na presença daquele público em particular obrigava a que eu, escondendo, renunciasse a uma parte de mim; fi-lo sem pejo nem pudor.
Seguiu-se uma discussão que guiaste e que pecou tão somente pela razão de ter sido excessivamente célere quando se pedia por mais. Contudo, tínhamos um horário a cumprir. Se não fosse cumprido, com o mínimo de rigor, seria o bastante para instalar a entropia na ordem de trabalhos. Zelaste imaculadamente por esse cumprimento. No final, quando proferiste o discurso conclusivo, ofereceste-me um mimo absolutamente inesperado: citaste um trecho do meu trabalho, preterindo assim das palavras de outros que pelo estatuto em que estão envoltos deveriam ter sido a tua escolha. O meu sorriso profissional manteve-se fiel e as restantes expressões possíveis do meu rosto ou do meu corpo alinharam, também elas, no mesmíssimo sentido. Só bem mais tarde te soprei ao ouvido a minha gratidão. No corredor, já fora da sala quadriculada, fui assomado por pessoas que queriam o meu e-mail, que não tinham conseguido apanhar na íntegra durante a exposição, algumas falando num português estrangeiro a Portugal. Não tive oportunidade para ficar surpreso, logo me vi enfiado em conversas que se desenrolavam em pequenos grupos, onde uns falavam e a maioria se limitava a escutar numa posição de espectador manifestamente assumida. Enquanto também eu dava ao verbo, passaste por mim de rasante e apertaste-me a mão esquerda que logo abandonaste com uma festa delicada dos teus dedos. Tão rápida e tu tão senhora de ti que ninguém reparou: só nós o sabíamos. Porém, e por mais que muita que fosse a vontade, não me podia permitir a abandonar o local. Sabia igualmente que tinha outro encontro marcado para logo, logo, cujo assunto era e é demasiado sério para se deixar ao incerto abraço do acaso. Deixei de pensar até em ti, aquela ambiência absorvia-me por completo e em absoluto. O cérebro trabalhava com um objectivo excluso, o meu pensamento era redutor, imerso naquela realidade.
Abandonei o edifício cerca de cinco horas mais tarde. Não te voltara a ver, o que até então não me perturbava. Estava embriagado na minha própria euforia. Creio mesmo que terás reparado e que se não nos encontrámos mais vezes durante essas cinco horas terá sido inclusivamente por obra tua, evitando-me propositadamente. Transpus o portão de saída saudando o segurança e só olhei, e de soslaio, uma única vez para trás. Alguém chegava de táxi, deixando-o vago. Logo desisti de ir até à rotunda da Boavista a pé como prometera fazer para compensar o meu desleixo com o exercício físico, o que ocorre demasiadas vezes mesmo que de tal esteja perfeitamente ciente. Fiz sinal ao condutor. Anuiu, podia entrar. Para o aeroporto, se faz favor. O acelerador foi pisado e o veículo depressa se pôs a galgar primeiro metros e depois quilómetros. Para o aeroporto, pensei para comigo. Carregava a sensação de um vazio, à qual decidi não atribuir importância. Desejava desesperadamente o avião do meu voo, regressar a Lisboa. Tudo o mais era mero ruído residual em torno de mim. No check in perguntaram-me se não viajava com bagagem que quisesse despachar para o porão do aparelho. Asseri que não, agradecendo. Caminhei, todavia, inseguro para as portas de embarque. Exactamente como aquando do percurso inverso, coisa extremamente rara, o aparelho de detecção de metais optou por me dar tréguas e não buzinou à minha passagem. Parei no número trinta e três e recostei-me nas desconfortáveis cadeiras de aeroporto. Qualquer coisa mexia comigo, mas o pensamento teimava em manter-se redutor, tal qual seis ou sete horas antes. A sensação de desconforto transmutou-se de assomo para presença inquestionável, era demasiado premente. Revi parte do trajecto. Detive-me nas memórias do check in. Qualquer coisa sobre bagagem. Porra! Nem me despedi dela! Enfiei a cara nas mãos formatadas em concha, esfreguei os cabelos com força e pertinácia. Merda, merda, merda. Miolos de merda. Provi, contudo, de me acalmar: nada podia fazer agora que alterasse o rumo dos acontecimentos. Mais uma vez, o que precisava era da cabeça fria. Ergui-me de imediato num impulso, estaquei e reli os painéis de embarque. O voo dela seria só no dia de amanhã e não estava ainda contemplado na listagem. Quanto ao meu pouco restava, deixando-me com uma escassíssima margem de manobra. Pela primeira vez desde que saíra daquela sala, não fazia a menor ideia do que fazer, de como agir. Então agi da maneira em que, literalmente, sou perito: não agindo.
Prestes a embarcar, sobravam três ou quatro pessoas na linha, decidi-me a enviar uma sms. Três letras, um hífen, mais duas letras, um ponto final. Mal o relatório de mensagem entregue surgiu no visor, desliguei o telemóvel. Entrei no aparelho, dirigi-me ao meu assento, confirmei se o i-pod estava desligado, coloquei o cinto de segurança, tudo com um automatismo que noutras circunstâncias certamente despoletaria em mim sentimentos de náusea e de horror. Meia-hora de viagem, após a qual um inferno até ao dia seguinte ou, quiçá, até ao outro e ao outro e ao outro. Enterrei a cabeça no encosto. Fechei os olhos e implorei ao meu cérebro que se desligasse por uns minutos. Nem tinha dado conta do quanto estava exausto, intelectual e fisicamente. Voltei a olhar o Porto, agora pela janela e noutra perspectiva. Estava escuro, noite feita, e as luzes da metrópole da Invicta pouco mais permitiam do que alguns vislumbres do seu tecido. Volvidos vinte minutos e estaria a aterrar na Portela. Sem ti. Sem um beijo teu. No Porto ficara o que mais importa, a bagagem que verdadeiramente merece consideração. Até amanhã, sussurro bem baixinho e, desta feita, com o mais honesto e doce dos meus sorrisos. Até amanhã…


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