sábado, 25 de julho de 2015

ausências evidentes, take vii


Corri os dedos pelo ecrã do tablet, desligando-o. Coloquei-o, com algum desdém, em cima da mesa de cabeceira. Duas e trinta da manhã, passavam uns minutos. Permanecia sozinho naquela cama que, sem ti, é uma enormidade. Aguardava-te, aguardava pela presença do teu corpo singular junto ao meu. Sentia-me estoirado, a bodega da viagem no dia anterior havia-me deixado inapelavelmente exaurido. Não que tivesse sido muito longa: uma hora e pouco de Florença a Munique, duas horas e quarenta, por aí, de Munique a Lisboa; a culpa é dos assentos, e talvez da pressurização do avião, os assentos em turística matam-me, fornicam-me as costas sem perdão nem apelo, contudo não sou rico para andar de conferência em conferência em classe executiva. Cobrira o rosto com as mãos em concha. A comunicação não tinha corrido de forma excepcional, porém também não me havia comprometido. No tablet confirmara não haver e-mails cuja urgência cativasse a minha atenção. Só o raio do artigo, ainda tão em atraso e tão espartanamente esquissado, perturbava o sono que entretanto assomara – isso e a ausência do teu corpo naquela cama infernalmente hiperbólica aquando sem ti. Inspirei profundamente duas vezes. Dois suspiros profundos que, sem dúvida, escaparam à tua audição. Olhei o maço de cigarros, porém depressa se esvaiu a ideia de ir até à janela da cozinha acender um prego. Mera preguiça, nada que concernisse com a consciência de um cuidado de mim, do zelo pela minha saúde. Pus a língua de fora, num sentimento de pseudo-desprezo para com o tabaco, e recoloquei as mãos em concha sobre o rosto, com os olhos vincadamente cerrados.

Que farias tu ainda na sala? Escutava os teus passos e alguns ruídos que, certamente, só tu poderias provocar. Mexericavas por entre algumas coisas, sem dúvida. O que farias? Que tamanha necessidade te movia para te impedir a que te juntasses a mim? Não fazia a menor ideia e os poucos neurónios que, no meu cérebro, teimavam em continuar despertos escusavam-se a esforços do pensamento. Parecias fazer de propósito, aguardando que eu adormecesse para também tu, enfim, viesses esgueirar-te sorrateira para o nosso leito. Estarias ainda de beicinho por eu me ter escapulido para terras da Toscânia durante uma semana completa quando três noites teriam bastado? Sabia quando marquei a viagem, e de antemão, que estarias impossibilitada de me acompanhar devido às obrigações que acompanhavam os teus afazeres profissionais. Sim, pernoitei sete vezes naquela cidade museu. Terei, por isso, acirrado a tua fúria? Uma vez mais os neurónios escusavam-se ao labor, pelo que me deixei desprovido de qualquer resposta. Estiquei-me na cama sem apagar a luz pardacenta do candeeiro da mesa de cabeceira; aquele do meu lado, no teu reinava profusamente a escuridão. Abri os braços em cruz e pus-me a contemplar inconscientemente o tecto, cabeça firme directamente no colchão – bem sabes o quanto odeio travesseiros; desde puto que assim sou, catraia; desde puto – desde um universo em que ainda nem sequer sonhávamos com a existência um do outro, tempos em que ainda não valorizávamos esta coisa tão divinal de se partilhar a vida com um companheiro que se ama e cuja vida se preza, inclusive, mais do que a nossa própria. Vem, minha menina. Vem. Implorava-te eu sem que tu disso soubesses ou sequer desconfiasses. Minha… És minha, sim. Porém, só és minha no mesmo sentido do tanto, e igual, que eu sou teu, pertença da mulher menina que tanto amo; e a ti me ofereço sem hesitação, não cogitando mas fazendo-o por instinto, aquele instinto que me dita poder colocar nas tuas mãos a minha vida – a confiança que em ti deposito é algo de quase infinito e de inquestionável. Por favor… Vem.

Mantinha-se o burburinho provindo da sala, o abafado ruído dos teus passos a acrescentar-se-lhe de quando em quando. Acreditava que nada terias de facto para fazer, todavia que inventavas fosse o que fosse tão-somente com o intuito de não te juntares a mim enquanto perdurasse em vigília. Recordei que poucas palavras trocáramos desde que regressara daquela cidade que quase nos remete para o quotidiano do Renascimento italiano, não fossem todos os atributos modernos e pós-modernos que a equipam – a luz eléctrica, os automóveis que circulavam nas estradas esguias, os smartphones de última geração que os turistas, cuja pressão na cidade é tremenda e até algo horrível, transportavam consigo, os neons, o eu sei lá que mais; estava exausto, já o mencionei. Poucas palavras. E beijos? E ternuras? E meiguices? Tudo isso tão parco. Que se passa connosco, miúda? Não, não é só o facto de poderes estar a embirrar com a minha ida, aos teus olhos, excessivamente prolongada. Algo não está bem entre nós, intuo-o com amargura ainda que igualmente com irrefutabilidade. Moça, já fomos melhores. Já fizemos mais para nos merecermos do que no presente agora vivido, tenho perfeita noção disso. Coisa que dói, magoa no âmago do meu ser. Estaremos… Suspiro, estaremos condenados a fracassar, periga o nosso dia-a-dia em comunhão? Merda de burburinho na sala que não se silencia.

Dei um pulo da cama. Dei um golo na água que uma garrafa de litro e meio, mesmo ao lado da minha cabeceira, permanecia erecta todos os dias sem excepção. Peguei o maço de cigarros, esfreguei os olhos e proferi em pensamento um milhão de asneiras. Percorri, célere, o caminho conducente à porta da sala. Eventualmente escutaste os meus passos e dirigiste o teu olhar para mim, que me apoiava na ombreira da porta, sem todavia entrar na divisão, e sorriste-me breve voltando logo a recolocar a tua atenção em papelada e livros que se amontoavam no chão. Vou dormir, estou um bocado de gatas ainda. Vai, julgava que já dormias, vai, descansa, dorme bem, descansa, olha, o meu beijo primeiro. Transpus a fronteira e fui ter contigo. Puxei-te e envolvi-te com os meus braços. Desenhei o melhor sorriso que consegui e juntei, delico-doce, os meus lábios aos teus. Contudo, não estavas presente, não estavas ali. Durante o nosso tímido beijo insististe em olhar para a confusão no chão como se não quisesses saber de mim. Vou à cozinha, fumar um cigarro, logo volto para a cama, já não me aguento. Vai, doce, e descansa, procuro umas coisas, preciso mesmo, já vou também para a cama, não tardo, sim? Sim, ternura, até já, e boa sorte com isso. Afaguei-te o cabelo num gesto nem rápido nem lento e dirigi-me para a cozinha e para a minha janela de fumo.

Deslizei a janela para a esquerda, abrindo um conexão para o mundo exterior, para aquele lá de fora. Isso após ter encerrado com a devida precisão a porta da cozinha. Um fumador que detesta o cheiro a fumo. De facto, às vezes não sei se não serei uma besta; atípica, mas ainda assim um anormal. O cigarro pendia da boca. Desta feita era eu que obrigava o cérebro a não pensar e não qualquer preguiça que se pudesse imputar ao desgaste físico dos neurónios. Não me apetecia pensar: estava, como se diz na gíria, fodido da vida. A tua displicência para com o nosso beijo parecia confirmar a minha profecia, de que não estávamos bem e de que parecíamos condenados, num futuro mais distante ou mais próximo, a um fim, a uma cisão irrevogável. Estava fodido. Isso ainda é dizer pouco, estaria a ser simpático na consideração. Isqueiro? Merda, nas calças. E calças, ora bem, no quarto. Abri, ainda mais danado, uma das gavetas de onde saquei uma caixa de fósforos com um aspecto duvidoso e até miserável. Que se lixasse, desde que cumprissem a sua função o resto não importaria. O primeiro alaranjou-se mal lhe raspei a cabeça na lateral da caixa e logo o encostei ao cigarro pendente dos meus lábios, aspirando mais porcaria do que alguma vez possa vir a imaginar. Contemplei as estrelas, soltando a primeira baforada do vil fumo que, por opção própria, enfio nos meus pulmões, infligindo ao meu ser maus-tratos pela minha mão. Poucas estrelas. Em Florença pareciam-me mais. É provável que aqui a iluminação artificial, ou a poluição ou o que diabo for, seja aqui mais forte e que assim vele mais os pontos luminosos do manto celeste. Tudo tem um fim. Desde que me lembro de ser gente que esta frase me acompanha. Tudo. Isso implica que nós também. Já? Somos ainda tão novos na nossa relação comungada… Tudo. Tilintava sem perdão essa única palavra: tudo. Mais fumo para os pulmões, mais fumo para o mundo lá fora. Fumava com tal pressa que até a máquina, o meu querido coração, se acelerava desmedidamente. Ou acelerar-se-ia principalmente por nos ver emocionalmente, afectivamente tão distantes apesar de nenhum de nós comprovar tal facto por palavras? Não tenho a certeza. Continuei a insistir com o cigarro. Porquê nós? E, mais ainda, porquê já? Amava-te? Bolas, sem dúvida, nem carecia de me questionar. Então porquê? Insistia com o cigarro. Mais que tudo, miúda. Amo-te mais que tudo. No manto celeste as estrelas cintilavam, incólumes à minha inquietação. Haja alguém, ou algo, tão sereno. Suspirei. Confesso que as lágrimas quase me vinham aos olhos, felizmente a minha cornadura encontrava-se a funcionar quase apenas à força de serviços mínimos, o que eventualmente colheu as minhas emoções evitando assim que me desfizesse logo ali. Mantive-me mais uns minutos prostrado à janela a observar o cintilar das estrelas. Como é sereno… Pouco depois acendia o segundo cigarro. Tossi, garganta irritada – da emoção ou do tabaco? Engolia a seco, a saliva escapara-se-me desde que fora à gaveta retirar os fósforos. E tu? Sim, tu. Amar-me-ás? Não ouso sequer pensar na negativa, seria injusto e perverso para contigo, é claro que sim. Enfim, nem sempre o amor é tudo. Devia ser. Mas não aguenta tudo, é o alicerce mais forte do mundo, mas o mundo, esse, é também todo ele imperfeito. Devia ser, devia bastar. Escutei as badaladas provenientes do sino da igreja próxima, três da manhã. Atirei o cigarro pela janela sem pensar sequer no que fazia. Abri a porta de um armário, segurei trémulo uma caixa de um medicamento sujeito a prescrição médica e subtraí a uma lamela uma cápsula. Cerrei a janela da cozinha, abri a porta e, encolhido, dirigi-me para o quarto. Com o auxílio de um pouco de água engoli o hipnótico. Em menos de meia-hora, bem me conheço, estaria na terra dos sonhos. Deitei-me e apaguei a luz do meu candeeiro de cabeceira. O burburinho na sala não condescendera e era para mim um inferno. Dorme bem, miúda, pensei. Depois, depois logo se vê.

Devia ser…

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