Volto a experimentar a tua ausência. Ontem saí contrariado para te conduzir a Sta. Apolónia, mal tendo aberto a boca no carro durante todo o percurso. Inversamente, escutava cada palavra tua com uma avidez tamanha que cheguei a temer ser a última vez que te ouvia. Tolices minhas às quais te vou poupando, isto se delas já não tiveres conhecimento dessa forma defraudando na íntegra os meus esforços de tas ocultar. De facto sou um tolo que demasiadas vezes se esquece de agradecer o facto da fortuna nos ter proporcionado viver num país de modesta dimensão territorial como Portugal o é. Ambos estamos cientes que a mobilidade humana se instalou para ficar e, ainda que a custo, a ela teremos que nos habituar. Curtas as distâncias, aqui. Imagino que preocupante seria ver-te abalar de NY para Palo Alto, CA, ou assim… Contudo, nem mesmo essa cogitação me sossega. Tremo cada vez que te observo partir. Temo que um dia seja a última vez.
O alfa pendular a levar-te para longe era um cenário construído do qual, por mais esforços que envidasse, não me conseguia abstrair. E tu, tu estavas ainda ali ao meu lado, escassos os centímetros que intervalavam os nossos corpos. Revias o teu discurso em tom bem audível, como que aguardando pela minha crítica que desta não veio porque não; não te interromper era-me fundamental, tal como as palavras que vocalizavas com a tua voz tão doce e em simultâneo firmemente decidida. Foi algo em ti, uma característica biológica e social, por assim dizer, que logo me cativou desde que pela primeira vez fui colocado na tua presença, de nada sendo relevante que nesse acontecimento o orador fosse eu. Característica biológica e social, sem dúvida: o teu tom de voz foi-te geneticamente concedido, transmitido pelos teus papás; a postura e a colocação do mesmo foi coisa culturalmente construída que adestraste à tua medida. Ficaria horas a escutar-te, sem hesitação e sem que o conteúdo importasse para o que fosse. Ouvir-te-ia dissertar sobre física quântica se fosse tua vontade, ou se tivesses saber para o executar. Estranha ambivalência, esta: a tua voz e o como a instrumentalizas excita-me e serena-me. Agora, todavia, era o pouco que me restava antes de te deixar abalar por mais quinze ou vinte dias em direcção à terra dos tripeiros – sem ofensa, do Porto só das melhores recordações.
A minha vontade era a de implorar-te que não fosses, que não me deixasses só com tantos outros na cidade alfacinha; excessivamente populada, obsequiosamente vazia sem a tua presença. Miúda, como me apetecia fazê-lo. Porém tratava-se de um delírio e nada mais do que isso, algo que deveria pertencer à esfera onírica. Jamais me passaria pela mente endossar-te tamanho e tão injusto requerimento; tens a tua vida profissional, como eu tenho a minha, e o respeito que te tenho é provavelmente superior ao respeito que por mim nutro… jamais, mesmo que tal possa vir um dia a ser a nossa perdição, o nosso tendão de Aquiles rompido e alimentado por um veneno por nós implacavelmente alentado no dia a dia.
Fiquei notoriamente mais ranzinza e impaciente por não conseguir encontrar espaço onde parquear o veículo. Ter-te-ia que deixar à porta da estação com apenas um beijo fugidio e fugaz? Parei, trancando a saída a dois ou três automóveis estacionados em conformidade com a dita lei. Abri e saí do nosso que nem uma fúria, batendo com força a porta à minha passagem. Dirigia-me, cego, ao porta bagagens. Do seu interior retirei um trolley que em nada me pareceu pesado, inversamente ao que sucedera quando saíramos de casa. Há muito que devia saber dos paradoxos que acometem distintos estados psicológicos. E sei-o, todavia em casa de ferreiro… o resto já se sabe. Só agora deixavas o carro, com os teus apontamentos em páginas soltas e o portátil arrumados na tua mala de métier. Percebi perfeitamente que me observavas com um ar estranho, ou melhor, de quem estranhava o meu comportamento. Conheces-me bem melhor do que isso, não te sou terreno virgem. Ainda assim teimas em fazer esse ar de quem se sente intrigado, e até algo ofendido, em todas estas circunstâncias ou outras que semelhantes. Talvez também eu teime em manter a mesmíssima prática, inadequada conduta de puto ofendido ou em ferrenha e indissipável birra. Desloquei-me, a mim e ao trolley cujas rodas já se arrastavam pelo chão, até à entrada principal da estação de Sta. Apolónia sem me dignar a olhar para trás e sabendo perfeitamente que não te encontravas a meu lado. Então parei e esbocei um sorriso tão tolo, querendo fazer passar que nada se passava, que logo o desmontaste na tua mente, o que se tornou mais do que perceptível no teu semblante. Sabia que não conseguiria fazê-lo vingar, mas a vã esperança de que o facto pudesse vir a suceder justificou ter ignorado, e quiçá ofendido, a tua arguta inteligência. Mantive-me fiel ao meu sorriso extemporâneo com a finalidade de não me tornar mais ridículo ainda, impedindo-me do absoluto desmoronamento exactamente ali. Despeguei-me da bagagem que transportava e assomei com ambas as mãos ao teu rosto, beijando-te delicadamente, e com todo o meu amor, os lábios; nada agora em mim mentia. Permitiste que a tua pasta escorregasse dos teus dedos até ao chão e abraçaste-me com vigor. Um beijo não te bastava. Muito menos a mim.
Miúda, a cada dia que passa noto a minha escrita, a sua qualidade ou falta dela, mais tacanha e mesquinha. A realidade é que me encontro bem longe do meu melhor. Já tu… Quando escreves, mesmo que o faças esmagadoramente num registo técnico, fluem-te as palavras com tremenda naturalidade e graça; e espírito. Reconheceria a assinatura do teu verbo em qualquer texto produzido pela tua pena. Vive no teu sangue e só lamento que não passes com maior frequência para outros registos, outros universos que dominarias tão bem… sei que sabes disso, porém não insisto contigo. Enfim, és muito melhor do que eu; melhor apenas, quando me encontro nos meus dias. Não te consigo explicar porquê, porque estou tão banal e ordinário, não só na forma mas especialmente nos conteúdos, conteúdos esses ora pervertidos por uma criatividade imaginativa estagnada e propensa ao definhamento. Talvez seja de todo o cansaço que se acumula, do uso excessivo do discurso técnico, do peso da tua ausência, da urgência em terminar a redacção do trabalho que me poderá atribuir o derradeiro grau académico. Stress. Ou desculpas, meras e incipientes desculpas para uma falha determinante que se instalou e que me recuso a todo o custo em reconhecer. Seja lá como for. Virá o dia em que conhecerei de certo uma resposta mais conclusiva e esclarecedora. Mencionei em texto pretérito que haveria de dar-te a conhecer este meu espaço, que reservo por variados motivos, tantos que nem vale a pena elencar nenhum. Reconheço que estou cada vez menos certo que esse acontecimento venha a ter lugar. Podem afirmar que tudo isto trata de uma espécie de competição e que se to não dou a conhecer é exactamente por me sentir aprioristicamente derrotado. Se um dia te contarem isso não acredites. São tretas de quem não nos quer bem. Vivo contigo numa relação partilhada, não numa corrida a disputar lugar medalhado. Miúda… orgulho-me demasiado de ti para que pudesse transmutar-me numa pedante criatura invejosa, coisa hedionda que só me desperta asco em todas as extremidades nervosas. Vou desligar a máquina: o mundo não pára para observar os meus devaneios. Sabes, fazes-me falta. Mais que muita.
O alfa pendular a levar-te para longe era um cenário construído do qual, por mais esforços que envidasse, não me conseguia abstrair. E tu, tu estavas ainda ali ao meu lado, escassos os centímetros que intervalavam os nossos corpos. Revias o teu discurso em tom bem audível, como que aguardando pela minha crítica que desta não veio porque não; não te interromper era-me fundamental, tal como as palavras que vocalizavas com a tua voz tão doce e em simultâneo firmemente decidida. Foi algo em ti, uma característica biológica e social, por assim dizer, que logo me cativou desde que pela primeira vez fui colocado na tua presença, de nada sendo relevante que nesse acontecimento o orador fosse eu. Característica biológica e social, sem dúvida: o teu tom de voz foi-te geneticamente concedido, transmitido pelos teus papás; a postura e a colocação do mesmo foi coisa culturalmente construída que adestraste à tua medida. Ficaria horas a escutar-te, sem hesitação e sem que o conteúdo importasse para o que fosse. Ouvir-te-ia dissertar sobre física quântica se fosse tua vontade, ou se tivesses saber para o executar. Estranha ambivalência, esta: a tua voz e o como a instrumentalizas excita-me e serena-me. Agora, todavia, era o pouco que me restava antes de te deixar abalar por mais quinze ou vinte dias em direcção à terra dos tripeiros – sem ofensa, do Porto só das melhores recordações.
A minha vontade era a de implorar-te que não fosses, que não me deixasses só com tantos outros na cidade alfacinha; excessivamente populada, obsequiosamente vazia sem a tua presença. Miúda, como me apetecia fazê-lo. Porém tratava-se de um delírio e nada mais do que isso, algo que deveria pertencer à esfera onírica. Jamais me passaria pela mente endossar-te tamanho e tão injusto requerimento; tens a tua vida profissional, como eu tenho a minha, e o respeito que te tenho é provavelmente superior ao respeito que por mim nutro… jamais, mesmo que tal possa vir um dia a ser a nossa perdição, o nosso tendão de Aquiles rompido e alimentado por um veneno por nós implacavelmente alentado no dia a dia.
Fiquei notoriamente mais ranzinza e impaciente por não conseguir encontrar espaço onde parquear o veículo. Ter-te-ia que deixar à porta da estação com apenas um beijo fugidio e fugaz? Parei, trancando a saída a dois ou três automóveis estacionados em conformidade com a dita lei. Abri e saí do nosso que nem uma fúria, batendo com força a porta à minha passagem. Dirigia-me, cego, ao porta bagagens. Do seu interior retirei um trolley que em nada me pareceu pesado, inversamente ao que sucedera quando saíramos de casa. Há muito que devia saber dos paradoxos que acometem distintos estados psicológicos. E sei-o, todavia em casa de ferreiro… o resto já se sabe. Só agora deixavas o carro, com os teus apontamentos em páginas soltas e o portátil arrumados na tua mala de métier. Percebi perfeitamente que me observavas com um ar estranho, ou melhor, de quem estranhava o meu comportamento. Conheces-me bem melhor do que isso, não te sou terreno virgem. Ainda assim teimas em fazer esse ar de quem se sente intrigado, e até algo ofendido, em todas estas circunstâncias ou outras que semelhantes. Talvez também eu teime em manter a mesmíssima prática, inadequada conduta de puto ofendido ou em ferrenha e indissipável birra. Desloquei-me, a mim e ao trolley cujas rodas já se arrastavam pelo chão, até à entrada principal da estação de Sta. Apolónia sem me dignar a olhar para trás e sabendo perfeitamente que não te encontravas a meu lado. Então parei e esbocei um sorriso tão tolo, querendo fazer passar que nada se passava, que logo o desmontaste na tua mente, o que se tornou mais do que perceptível no teu semblante. Sabia que não conseguiria fazê-lo vingar, mas a vã esperança de que o facto pudesse vir a suceder justificou ter ignorado, e quiçá ofendido, a tua arguta inteligência. Mantive-me fiel ao meu sorriso extemporâneo com a finalidade de não me tornar mais ridículo ainda, impedindo-me do absoluto desmoronamento exactamente ali. Despeguei-me da bagagem que transportava e assomei com ambas as mãos ao teu rosto, beijando-te delicadamente, e com todo o meu amor, os lábios; nada agora em mim mentia. Permitiste que a tua pasta escorregasse dos teus dedos até ao chão e abraçaste-me com vigor. Um beijo não te bastava. Muito menos a mim.
Miúda, a cada dia que passa noto a minha escrita, a sua qualidade ou falta dela, mais tacanha e mesquinha. A realidade é que me encontro bem longe do meu melhor. Já tu… Quando escreves, mesmo que o faças esmagadoramente num registo técnico, fluem-te as palavras com tremenda naturalidade e graça; e espírito. Reconheceria a assinatura do teu verbo em qualquer texto produzido pela tua pena. Vive no teu sangue e só lamento que não passes com maior frequência para outros registos, outros universos que dominarias tão bem… sei que sabes disso, porém não insisto contigo. Enfim, és muito melhor do que eu; melhor apenas, quando me encontro nos meus dias. Não te consigo explicar porquê, porque estou tão banal e ordinário, não só na forma mas especialmente nos conteúdos, conteúdos esses ora pervertidos por uma criatividade imaginativa estagnada e propensa ao definhamento. Talvez seja de todo o cansaço que se acumula, do uso excessivo do discurso técnico, do peso da tua ausência, da urgência em terminar a redacção do trabalho que me poderá atribuir o derradeiro grau académico. Stress. Ou desculpas, meras e incipientes desculpas para uma falha determinante que se instalou e que me recuso a todo o custo em reconhecer. Seja lá como for. Virá o dia em que conhecerei de certo uma resposta mais conclusiva e esclarecedora. Mencionei em texto pretérito que haveria de dar-te a conhecer este meu espaço, que reservo por variados motivos, tantos que nem vale a pena elencar nenhum. Reconheço que estou cada vez menos certo que esse acontecimento venha a ter lugar. Podem afirmar que tudo isto trata de uma espécie de competição e que se to não dou a conhecer é exactamente por me sentir aprioristicamente derrotado. Se um dia te contarem isso não acredites. São tretas de quem não nos quer bem. Vivo contigo numa relação partilhada, não numa corrida a disputar lugar medalhado. Miúda… orgulho-me demasiado de ti para que pudesse transmutar-me numa pedante criatura invejosa, coisa hedionda que só me desperta asco em todas as extremidades nervosas. Vou desligar a máquina: o mundo não pára para observar os meus devaneios. Sabes, fazes-me falta. Mais que muita.