quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Tão simples...

Quantas vezes nos esquecemos, guardadas para nós num mutismo ignorante, de verbalizar coisas simples e tão simples que, amiúde, as temos como garantidas? Mais do que devíamos, creio. É fácil não lembrar, mesmo quando não esquecemos; humanos demasiado humanos, diria um mestre... Mesmo assim, nada é garantido; nem mesmo o dia de amanhã. Não se trata de um fatalismo obstruso, antes, quiçá, de uma realidade provável.
Apetece-me sair desse casulo do silêncio, dizer-te sem meias palavras o espéctaculo com que a natureza te prendou; e, noutra medida, a mim também. És linda, sabias? Nunca a memória se encerra na omissão do facto que se constata, mas prende a mente a sua exteriorização que tão afiançada guarda para si. Quero também que não te permitas a tamanho olvidamento, que saibas pelo meu saber o quão bela te acho, o quão bela és aos melhos olhos, o quão real é a tua beleza. Podias sugerir que é o meu olhar, deformado por imperfeições a si inerentes quanto a outras tantas que do exterior desfocam a lucidez de quem vê, mas sabes que não. Que mesmo no meu silêncio são estes meus olhos que te comunicam, num esgar ou vislumbre contínuo, o que a boca, menos por desleixo do que pela tácita certeza do facto, teima em excesso não enunciar ou exprimir com a clareza de quem fala imune a ruídos comunicantes. A tua face que enleia os meus sentidos, com os teus olhos melados a mel pintados, os teus lábios que permitem escapar um sorriso embriagante, a tua testa incapaz de esconder outra belezas ocultas, essas orelhas que são o refúgio dos ouvidos que me escutam, o teu nariz que me toca gelado numa imensidão de brasas. O teu corpo, que tão bem corresponde aos predicados dessa natural beleza, toscamente por mim descrita, como à que se constrói em torno de todo o teu eu. Porque ficam tantas vezes, demasiadas, por declarar as palavras que mereces e que tão bem te descrevem? Temos medo da repetição, o receio de babar palavras que assim se tornariam, tolo receio, banais. Consequência, calamos em excesso aquilo que não se deixa babar pela banalidade, esquecemo-nos que estamos esquecidos de dizer. Rompo com o vício desse círculo, exalto-te: és linda, sabias? És mesmo. Princesa no teu reino, não me esqueci.
É tão simples. Tão simples dizer que. Diz-lhe.


"Oh I, I just died in your arms tonight
It must have been something you said
I just died in your arms tonight

I keep looking for something I can't get
Broken hearts lie all around me
And I don't see an easy way to get out of this
Her diary it sits on the bedside table
The curtains are closed, the cats in the cradle
Who would've thought that a boy like me could come to this

Oh I, I just died in your arms tonight
It must've been something you said
I just died in your arms tonight
Oh I, I just died in your arms tonight
It must've been some kind of kiss
I should've walked away
I should've walked away

Is there any just cause for feeling like this?
On the surface I'm a name on a list
I try to be discreet, but then blow it again
I've lost and found, it's my final mistake
She's loving by proxy, no give and all take
'cos I've been thrilled to fantasy one too many times

[...]"

'(I Just) Died In Your Arms', Cutting Crew

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

L'Année XXI

O dia nascera ainda era de noite. Não seja de estranhar, no nosso plano geográfico assim é sempre. Foquemos, porém, outros cuidados que não este. Germinava novo dia, sol cortinado pela noite. O Óscar, senhor mocho de carvão parido, contemplava no corredor, olho inevitavelmente arregalado. Do alto do chão, onde tem poiso e altar, percebia as movimentações inquietas polvilhadas, a condimento, por um frenesim a meio que encoberto. Sabido, este recente nascituro que alcançava o significado de tal circunstância; restava-lhe ainda, à circunstância, devida pompa. De pajem se passa a cavaleiro, assim ditam os olhos que também assim querem olhar. Montava garupa buscando pela essence de femme; perfume de mulher, traduzindo com eloquência mais que merecida: por ela, mulher princesa, do que pela essência construída mesmo que adequada. Encontrou igualmente o nosso cavaleiro correspondência dedicada àquele ser que amava com pureza acima de qualquer outro semelhante: aliás, aí residia, sabemo-lo, o segredo desse ente, a unicidade de ser único; única.

Às primeiras badaladas dos primeiros minutos do ano XXI reencontrou-se com a sua musa, com aquele especimen tão adorado; exclusivo, dissemo-lo. Sussurrou-lhe palavras doces que se viam legitimadas pelos gestos meigos que as acompanhavam, em sintonia harmoniosa de coisas e pessoas que se complementam; que crescem na incessante procura de, juntas, se completarem. Os homens dão um nome a este sentimento, encontram formas de o endeusar por ser seiva que escorre dos próprios deuses. Momentos que gotejavam felicidade ao mesmo ritmo que pálpebras pestanejam, dança idílica maravilhosamente semelhante ao cintilar dos astros que desta maneira trocam, em dádiva, as suas cumplicidades. E o cavaleiro é prendado por sorriso que faria corar de inveja aqueles que a lua tece, pela ternura que acalenta uma alma como a fogueira preenche com o seu calor os mais destemidos que se lançam à aventura ao largo de espaços abertos do desconhecido.

Abraçados, amavam-se e disso tinham consciência. As suas preces ao alto destinavam-se a agradecer essa divina oferenda que o cosmos a eles havia montado em magistral esquisso. O escuro do dia era para durar, restavam horas até que a aurora despontasse. Num leito ninho, mais alto que aqueles das aves de rapina das montanhas, não menos distinto que os do monte Olimpo, alimentavam a sua fábula vivida no real. Encostavam cabeças com ternura, enroscavam pernas e braços como se, ávidos, de dois quisessem que apenas um único ser, roçando a perfeição que tão negada é ao mundo empírico, resultasse em fusão dos seus esforços realizados sem esforço. Também a noite do dia os abraçou, num sono profundo e descansado, sabendo-se ali um com o outro.

Quem diz que as estórias são estórias, fábulas inconcretizáveis no mundo real dos adultos?




Encosta-te a mim, nós já vivemos cem mil anos
encosta-te a mim, talvez eu esteja a exagerar
encosta-te a mim, dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou, deixa-me chegar

Chegado da guerra, fiz tudo p'ra sobreviver
em nome da terra, no fundo p'ra te merecer
recebe-me bem, não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói, não quero adormecer

Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim

Encosta-te a mim, desatinamos tantas vezes
vizinha de mim, deixa ser meu o teu quintal
recebe esta pomba que não está armadilhada
foi comprada, foi roubada, seja como for

Eu venho do nada porque arrasei o que não quis
em nome da estrada onde só quero ser feliz
enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada
vai beijar o homem-bomba, quero adormecer

Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, um dia hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim


'Encosta-te a Mim', Jorge Palma