terça-feira, 16 de outubro de 2012

ausências evidentes, take iv

Optaste por prolongar a tua estadia pelas terras da Invicta. Não te condeno. Nem posso, mesmo que fosse essa a fome da minha vontade. O meu vínculo profissional exige a minha permanência continuada na metrópole de Lisboa, o teu na cidade do Porto. Actualmente, e até num futuro a médio prazo, nada há que possamos fazer para alterar as circunstâncias que agora guiam os nossos compromissos relativos à esfera profissional. Antes de nos conhecermos melhor sabíamo-lo, estávamos completamente esclarecidos quanto aos trajectos que não podíamos evitar, anteriores a nós mesmos. O tempo vai passando, quantas vezes sem dele darmos conta, e vai para lá de um mês que não somos postos na presença um do outro. A uma dúvida que se havia assomado à mente, e à qual não quero escapar pelo menos a tentativa de obter melhor compreensão, adiciona-se presentemente outra: terá sido acertada a opção de arrendarmos conjuntamente habitação em Lisboa? Alturas houve em que não hesitaria em responder, com a flexão na afirmativa. Hoje em dia, porém, a convicção esbateu-se, a dúvida instala-se mais confortável nos seus senãos, os porquês surgem menos espaçados e as respostas aos mesmos tendem a ser esguias quando não completamente inexistentes. Vicissitudes dos tempos modernos; ou melhor, da nossa modernidade. A certeza e a previsibilidade são substituídas pelo risco e pela multiplicidade da acção individual solipsista. Não poderemos ser nós dois, única e exclusivamente, a mudar o mundo – aliás, demasiadas são as vezes em que é este que nos altera e nem sempre no sentido manifestamente desejado pelas nossas duas individualidades.

Compreendo perfeitamente a tua decisão e, de um certo modo, também a suporto. Creio que menos não esperarias de mim, nem eu de ti. Sei bem que não abandonaria Lisboa como residência no espaço de tempo do imediato. Tenho as minhas razões, as minhas boas razões; exactamente as mesmíssimas que a ti atribuo com as tuas ausências rumo ao Porto que a pouco e pouco vão sendo cada vez mais extensas. Presumo, num tom pessimista para o tal nós, que não tardará a que te mudes de armas e bagagens. Presunção pouco simpática, como é evidente, já que é mais do que garantido que não me poderei permitir acompanhar-te. Bem sei que estou a tentar não explicitar o inevitável, contudo não sei por quanto tempo eu e tu, ou nós, nos consigamos conter. Se fosse um jogo diria que estávamos perante uma situação em que nenhum cenário dos possíveis é vencedor ou capaz de o ser. O que é mais grave é que estou a habituar-me a viver o meu quotidiano apartado de ti, inclusive nas mais pequenas coisas que amiúde me te traziam à memória. Jantar, um ritual que fazíamos questão que acontecesse a dois, passou a ser normal suceder apenas entre mim e o televisor, isto quando não levo o prato para o quarto e me fixo no ecrã do portátil. Quebrou-se, ou está-se a quebrar, o hábito construído e constituído de nos alimentarmos enquanto nos entrosávamos em amena cavaqueira ignorando por completo os sons emitidos pelo aparelho de televisão invariavelmente ligado. O elo, o nosso elo, parece querer escorregar por entre a impossibilidade que se entrepõe e impõe entre as nossas vontades. Não me é fácil nem agradável admiti-lo, mas o vivido fala por si e, como se diz, contra factos não há argumentos. O amor devia ser mais forte do que tudo. Sê-lo-á?...

Hoje, sábado, declinei o convite semanalmente reiterado para ir tomar café com alguns bons amigos de longa data. O meu círculo social já não é nada de extraordinário, pelo que não é com leveza que pretiro destes momentos especialmente para me dedicar a práticas introspectivas que me conduzem, inapelavelmente nos últimos tempos, à interrogação sobre o nós. Porém foi exactamente esse o leitmotiv subjacente à recusa em ir socializar com a rapaziada. Mais do que convicto, estou certo disso. Almocei um hambúrguer manhoso numa dessas casas que se encontram praticamente ao dobrar de cada esquina e voltei sem mais embargos para casa. Queria-me só ou comigo e as paredes, que é dizer o mesmo. Estirei-me na cama mal me vi livre dos ténis; sem atacadores, até estas criaturas dispensam os laços. Bem a meio da cama, a observar o tecto, procurei colocar-me o mais confortável possível. As mãos atrás da cabeça e as pernas semi-flectidas. Por instantes tal foi a torpe que me enleou que julguei ir cair no sono. Contudo, esforcei-me para me manter acordado. Tinha vários projectos introspectivos em mente aos quais me queria dedicar e não estava disposto a protelá-los. Embora não tenha fugido na íntegra, lá espantei o sono que se aproximara sorrateiramente e matreiro. Pus na boca um kompensan, coisa de que me faço acompanhar religiosamente, a fim de mitigar o desarranjo então surgido no estômago – refluxo esofágico, diz-me o médico. Sabia que havia um nós. Todavia, haveria um projecto para esse nós? Algo de concreto, sustentável? Passei o comprimido de um lado da boca para o outro, revelando o meu nervoso miudinho e a tentativa de apelar aos meus neurónios que laborassem em conformidade com as exigências da situação que jamais me parecera tão delicada quanto agora. Atirei uma mão para o meu lado da cama, mas ao invés da habitual garrafa de água apenas encontrei o vazio; desisti. Afinal, talvez tenha sido burlado por artes de labuta do inconsciente, nem sequer tinha sede. Não de água, pelo menos. Sede, sim. Mas de respostas, por mais hipotéticas e provisórias que elas fossem. Respostas… Quem não as quer? Certos estão os que asserem ser mais fácil dizê-lo do que fazê-lo; já sei que é uma verdade à la Palice, contudo nem por isso menos acertada.

O ruído dos automóveis que circulavam avidamente pela rua incomodava-me, o que, diga-se, é qualquer coisa de bastante raro. Sempre fui um citadino, um nado da metrópole: aqui e ali tenho asseverado que Lisboa é a minha segunda mãe. Coisa tola. Ou nem por isso. Mas, de facto, não é tema para agora – debate para outras núpcias. Por que motivo danado fujo sempre com o rabo à seringa quando farejo assunto que suspeito ser desagradável? A minha capacidade de alienação é extraordinária quando os ventos não me sopram a favor; este é um desses casos, provavelmente dos mais paradigmáticos para exemplificar essa mencionada capacidade perante a contrariedade, a impotência, adversidades de monta, enfim, perante a frustração. Saí da postura confortável em que na cama me encontrava. Ponderei, errando pelo corredor único da casa, se não faria melhor em juntar-me àquele turbilhão de veículos em movimento, percorrendo por meu turno o tecido betuminoso que constituí boa parte da derme da minha amada Lisboa. Após alguma indecisão, subtraí essa hipótese do leque de possibilidades. Afinal pretendia estar comigo e por muito que goste de papar quilómetros enquanto me perco no profundo de mim mesmo esta não me pareceu opção acertada, não para saciar os meus anseios presentes – estava, definitivamente, fora de questão. Ao invés, seria de maior tino permanecer por casa. Acenei que sim, como que corroborando a minha própria sentença. Acabei por me sentar no sofá da sala, não sem que antes me tivesse ajoelhado defronte do singelo bar de madeira para dele retirar um copo baixo e bojudo que enchi com uma medida de três dedos de líquido de um dos meus whiskeys predilectos; dispensei as duas pedras de gelo do costume. Quebrei igualmente a nossa regra de não fumar na sala, coisa que só muito extraordinariamente acontece como quando reunimos alguns amigos, dos meus e dos teus, para uma jantarada que se prolonga noite afora até ao despontar da madrugada – ainda assim, nunca era eu a acender o primeiro cigarro. Levei o copo aos lábios a provar aquela bebida que ainda é mais quente quando desprovida das minhas habituais duas pedras. Poisei-o no braço do sofá para ir apressadamente ao escritório buscar o cinzeiro, creio que o único que temos no nosso cantinho – quanto aos mencionados jantares vários eram os apetrechos que, ao improviso, faziam as vezes de um cinzeiro. Troquei de posições copo e cinzeiro, passando um para a mão e o outro para o braço do sofá. Abri uma frincha nas janelas e voltei a sentar-me, já com o cigarro a fumegar na mão oposta àquela que segurava o copo servido. Fiz com que o mesmo, o copo, encontrasse mais uma vez os meus lábios. Porém, desta feita, aproveitei para uma golada mais profunda, acto que deixou apenas um risco breve de tonalidade âmbar a baloiçar no fundo do copo. Apercebi-me do erro da minha precipitação ao sentir o ardor provocado pelo líquido que atravessava o caminho que o depositaria no estômago, estômago que terá ficado danado comigo vista a forma violenta e célere como desagradavelmente se abrasou. Precisava de ter mais calma, pois não pretendia ficar ébrio o que implicaria, para mais contra a minha vontade, perturbar o regular funcionamento do sistema neuronal. Com o remoto liguei o leitor de dvd que por obra do acaso ainda continha em si o disco de música que lhe introduzira no dia em que havias dito regressar – o que, com facilidade se constata, não sucedeu. O seu impacto para comigo foi no mínimo ambivalente: se por um lado o álbum se encontra no lote dos meus musts, por outro cristalizava em mim a tua ausência já que habitualmente quando tocava, ainda que sem déssemos conta disso nessas alturas, o escutávamos em comunhão. Com um sorriso triste a ponderar sobre a constatação bipolar soergui-me e verti da garrafa para o copo um pouco mais de whiskey, o suficiente para que tomasse a aparência original de quando me servira. Voltei a molhar os lábios, tenuemente, precavido dos efeitos não desejados por trago exacerbado. Serena, a tarde ainda só vai a meio. Escuso precipitar-me esvaziando apenas num breve espaço de um par de horas uma garrafa de quase quarenta graus de álcool que ainda mal encetada tinha sido.

À medida que a tarde se ia fazendo noite outro ocaso acontecia em simultâneo no meu cérebro fervilhante – a saber, o nosso; ou assim o via, sem saber ao certo o que era isso que eu via. Não, não era torpe provinda do consumo do líquido espirituoso. Sabia-me – sentia-o sem réstia de dúvida – absolutamente sóbrio. Os discos lidos já iam para cima de três ou quatro, mas como permanecera praticamente imóvel o whiskey não tinha levado nenhum outro avanço desde que a borda do copo tocara os lábios logo após o reabastecimento. Passara um coro de horas a pensar em tudo e em nada; nem eu mesmo saberia fazer uma síntese deste facto tão prolixo como paradoxal – na realidade sentia-me tão paroxista como indigentemente indiferente. A concentração escapava-me, em nada o posso negar nem há palavras que me contradigam, porém a responsabilidade, uma vez na vida, não podia ser imputada ao álcool e aos seus efeitos aquando resultado de um consumo desmesurado. A entropia vivia em mim; ou era-o eu. Os meus movimentos redundaram, por tanto que os ponteiros do relógio avançaram, na troca de discos no leitor e a um ou outro espasmo ou contorção devido à abominável sensação de dormência que então perfilava num determinado músculo. Todavia, do que ainda assim concluíra mesmo que num profundo estado de astenia nada ia ao encontro do meu agrado; ao invés assentei num pessimismo que atribuía ao modelo pragmático a que não conseguia escapulir. Sem reservas de maior, via-me projectado num futuro no qual não caberias: tratava-se, mais que tudo, de apenas uma mera questão de tempo e tão-somente isso. Acendi um cigarro. A expressão do rosto devia desenhar-se falida, o brilho nos olhos extinto. Mecanicamente fumei o cigarro, novamente entregue à apatia e a pensamentos dispersos e desconexos, devaneios de quem deixou de acreditar: em si, nos outros, enfim, num qualquer sentido meritório que fizesse mover a minha vontade.



Por hoje basta. O volume de trabalho a que me deixei sujeitar por desleixo, fenómeno indissociável do meu modo de ser, tem-me deixado exaurido física e mentalmente. Pouco é o tempo que resta para mim próprio e careço dele para uso que permita refrear os laços à realidade – a fuga é quase tão importante quanto a integração. Tempo só e exclusivamente para mim ou, mais certo, para o cuidado de mim – coisa de que preciso como o ar que respiramos, por muito poluído que esteja, por mais ordinária que seja a sua qualidade. Hei-de dar continuidade ao que, por mote próprio mas sem saber ao certo das consequências, iniciei. Não me arrependo. Contudo, exige-se uma pausa na redacção de palavras. O descanso assume contornos acima da necessidade, torna-se premente e sei-o insubstituível. Até breve, garanto.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012