sábado, 28 de julho de 2012

Distâncias


Quinta-feira. Tiveste que voltar hoje ao Porto. Afinal, é nessa cidade que desenvolves a maior parcela do teu trabalho. Partiste cedo, ainda de madrugada, pelo que a tua consciência optou por ditar que não me despertarias. Tenho pena que assim decidisses, preferia ter visto o meu sono interrompido, mas de qualquer forma não censuro o teu juízo. Fizeste o que entendeste melhor, o que o teu tino considerou como decisão acertada, e no teu lugar provavelmente teria agido do mesmo modo. Pelas oito e pouco da manhã, sem ainda ter consciência concreta da hora, sentia-te presente, o que era falso. O teu cheiro ainda emanava forte dos lençóis, do travesseiro, único na cama porque eu há muitos anos que o dispenso. Era este o engodo que me levava a acreditar que a tua ausência seria coisa nas mãos do por vir. Logo percebi o erro a que se tinha entregue a minha percepção. O teu lugar, opostamente ao que acontecia no meu, estava frio, demonstrando por a mais b que havias deixado o conforto da cama fazia muito.

Disseste-me na véspera que pretendias abalar antes das seis, pelo que assumo que te terás erguido poucos minutos após a quinta badalada da madrugada. Já conhecia a sensação em que me via envolto, nada tinha de inédito, não me era novidade. Como a cama é enorme. Como é enorme sem ti. Perdia, inclusivamente, grande parte do seu sentido, transmutando-se num monstro deslocado face ao nosso universo. Talvez por isso tenha saído dela o mais rápido que consegui, talvez por isso tenha despertado de uma forma tão imediata e brusca. Se não estava disposto a perder a réstia do teu cheiro, menor era a disposição de partilhar aquela cama com o vazio gélido e impessoal que tão mal te substituía. Entrepunha-se entre o nosso viver cerca de trezentos quilómetros de distância e uma mão cheia de milhares de metros em altura. A princípio, estou certo que na sexta-feira passada, dizias-me que levavas o carro. Domingo, contudo, constatei que marcavas uma passagem aérea, ida e volta, num site de viagens alojado na Web. Fiquei surpreso, não é teu hábito usares esse transporte que rasga os céus nos teus périplos entre Lisboa e Porto – assim sei porque mo contaste tu, somos ainda demasiado jovens quando falados no plural; e acredito em ti, sim, acredito, ternura. Pelas minhas contas deves estar a sobrevoar a área metropolitana do Porto. Sim, recordo bem que estava prevista a saída da Portela pelas sete e quinze. São tão somente cerca de vinte minutos de voo que separam Lisboa do Porto. A estes há que somar aqueles que decorrem enquanto a máquina de asas aguarda pela sua vez, fazendo-se por fim à pista e daí arremessar-se para as nuvens; e aqueloutros, que antecedem a aproximação ao aeroporto de destino, a aterrizagem em si e o parqueamento do gigante pássaro metálico. Tudo isto em uma hora, menos de uma hora. Era esse o tempo que nos separava, longe, contudo, da real distância física a que te sentia. Podias ter-me acordado, digo, despenteado, com ar labrego e voz de sono, alto para o espelho que olhei de esguelha antes de buscar a escova e a pasta de dentes. Repeti, dizendo-o outra vez, agora notoriamente irritado por a máquina da escova me transmitir com um zumbido ténue que precisa da bateria recarregada. Paciência, vai assim mesmo, molhando a extremidade da escova na água que escorria da misturadora do lavatório. Ou não, ou não. Afirmei em pensamento a fim de evitar que cuspisse o espelho com saliva e dentífrico, facto inevitável se me decidisse por me exprimir em palavras faladas. Limpar o espelho seria enfadonho e o pior, sei-o bem, é que não o limparia pela preguiça que a tua ausência tantas vezes motiva em mim. Se soubesses quantas vezes limpo, arrumo, aprumo de forma forçada e em tempo limite… até tu perderias essa tua calma sobranceira que tanto admiro. Devia ter-me acordado, bolas, rosnei entre dentes enquanto manipulava, em simultâneo, a misturadora do duche do polibã. Nada. A água sempre fria. Desagradado, arrastei-me até à cozinha, nem me acordou e desligou o esquentador, pontuando o final do pensamento com uma expressão vernácula. Abri a portinhola, fingindo ser continuação do armário que guardava toda a espécie de loiças e mais algumas que eu ignorava, e protestei ao encontrar o manípulo do gás cortado.

De retorno à casa de banho baixando a totalidade do manípulo, cortando o fluxo de água que deixara a correr em catadupa. De novo para a cozinha e com o esquentador defronte permiti-lhe que se alimentasse de gás, rodando a torneira para a posição on. Com força desmedida puxei, incisivo, a alavanca até ao seu limite, para cima e para a minha esquerda. Expirei, danado sabe-se lá com o quê, brusca e ruidosamente, com os lábios semiabertos a fim de tornar este expediente mais célere e, ainda que estivesse só, mais dramático. O vapor saído da torneira indicava que estava tudo pronto. Voltei a encarar o espelho. O negro papudo por debaixo dos olhos era inconciliável e informava-me que andava a exagerar quer do físico como da mente, sendo, contudo, absolutamente ignorado por mim, sentimento que reiterei com um encolher de ombros rápido e como que indiferente, abandonando depois e sem demora a imagem reflectida no espelho. Porque raio a água estava tão quente? Tu havias de gostar. Gaita, não me podias ter acordado, sem abrir a boca que a água entretanto começara a jorrar pela minha cabeça, corpo abaixo, até se escoar pelo ralo. Encostei ambas as mãos aos azulejos húmidos e desconfortáveis, suportei o meu peso com os músculos dos braços.Com a cabeça a pender para baixo e com a água, que caía de cima, a massajar a nuca partilhei em boa voz com qualquer fantasma que se pudesse encontrar na casa de banho: não podias ter-me chamado? Pouco importava. Estava feito e para além de qualquer reparo. De nada valia estar a especular sobre cenários que nunca poderiam ter força para se impor ao determinismo do que já foi. Ainda com a cabeça pendente, esforçando-me por adquirir as minhas faculdades que nem o choque térmico tinha sucedido em arrancar à torpes, vacilava-a, com o vigor possível, em direcções opostas, num significado que não, que não percebia, que não compreendera a tua atitude; que, no íntimo, era incapaz de aceitar. Haveria de acordar em conveniência, haveria de ficar embaraçado com a mescla de sentimentos de raiva e fúria e mais ainda de abandono e de despropositado ciúme que permitira ultrapassarem os mínimos razoáveis do meu discernimento. Só não o sabia ainda. Para mim, o dia mal principiara e, num primeiro entendimento, não propriamente da melhor maneira. Partiras, era isso o que de facto me afectava. Não suportava a ideia de uma quinzena de ausências, toscamente interrompidas por telefonemas quase sempre curtos e pelos contactos online via webcam onde o à vontade era escasso por motivo de constrangimentos que eu próprio desconheço; nunca fui bom, nem nunca fui adepto, das interacções no universo do espaço virtual com a pessoa que, comigo, partilhava da mesma cama. O computador, nada mais do que uma máquina, era um intruso desajeitado e indesejado no nosso leito. Céus, como odeio falar-te à distância.

Rodava no carro rumo a Cascais. Não te ligara nem tu a mim. De qualquer forma, embora mais do que certo que não telefonarias, imaginava-te já numa sala qualquer do departamento da faculdade, fazia figura de tolo com o auricular sem fios enfiado na orelha direita – nunca o uso à esquerda quando conduzo, evitando a panóplia de ruídos pelos quais seria assaltado no caso de, por algum motivo, como o de acender cigarros que aos teus olhos é um acto criminoso que auto-inflijo, acabar por descer o vidro que complementa a janela – agarrado e fazendo apelo à piedosa ideia do talvez. Estacionei o carro e com o motor ainda a consumir combustível olhei o mar. Pela primeira vez no dia experimentava uma sensação de profunda calma, à qual me entreguei sem obséquios, recostando-me no estofo do automóvel após ter rodado a chave para a posição de desligado. Assim permaneci imóvel, com o auricular a começar a tornar-se incómodo, durante prolongados minutos. Os meus únicos gestos devem ter-se limitado àqueles estritamente necessários para retirar os óculos escuros do rosto a fim de contemplar, ou assim o pensava, com maior grau de pureza o espectáculo que assomara aos meus olhos e que penetrara cómoda e confortavelmente em todo o meu ser. Por momentos, estava em paz. Com o meu mundo, com o teu, com o nosso, com todo o demais que nos rodeia.

Quebrado o feitiço do mar, sem o qual juro vezes sem conta que não conseguiria viver, recoloquei os óculos escuros – um dos cinco pares que guardo segundo uma ordem precisa no topo de uma estante de metro e meio que temos encostada numa parede do nosso quarto, por cima das credenciais que vou coleccionando de congressos e afins; onde terás tu as tuas? – percebo agora que só me recordo de as ver a pender no teu peito, quase sempre enlaçadas no pescoço, pontualmente a trilharem-te a roupa à força de uma mola mais ou menos dentada, conforme o critério das respectivas e distintas comissões organizadoras, sorrindo, há tanto que desconhecemos daquilo que chamamos nós, mais preciso, cogito, de cada uma das singularidades que em unidade constituem, estruturam e dão razão de ser a essa tal coisa, a esse fenómeno, o nós. Observo o retrovisor que me espelha a informação de estarem já os meus olhos protegidos não da claridade parida por um sol veraneante radioso mas sim da intrusão dos olhos dos outros que lhes possibilitam a percepção visual, e não só, do espaço em que se encontram envoltos. Sou de facto egoísta e hedónico, tenho como prazer ler os eventuais significados que o olhar dos outros transmitem, contudo reservo-me a barrar-lhes possibilidade semelhante. A mão esquerda faz a porta do automóvel bater com força suficiente para se encerrar convenientemente, os dedos da mão direita, para além de segurarem firme a mala com o netbook, o gravador digital e uma moleskine de bolso a dois terços preenchida com a minha letra hieroglífica, apertaram o botão apenso à chave trancando o acesso ao veículo por desconhecidos, ou assim se espera que seja. Há uma entrevista, mais uma, a conduzir. Volto a olhar em redor como faria um predador no seu habitat de caça. Desço os degraus conducentes ao paredão da praia, o olhar atento ao cinzento do seu cimento, já mais do que uma vez, porque distraído, me ia estatelando por elas. Inconscientemente, levo uma mão a um joelho, ainda dorido do derivado da pancada seca num rígido degrau. Defronte o areal e depois o mar, que se espraia incansavelmente na areia. Rodo o corpo para a direita e prossigo pelo paredão. Quinze dias sem ti. Partiras sem te importares em me deixar nos lábios com o sabor do beijo teu. Uma eternidade, para quem desdenha da espera e que com ela convive desagradavelmente e sem armistício. A entrevista. Concentra-te. Já basta teres que descodificar no discurso o que foi dito e não dito, os silêncios e as palavras verbalizadas com vincada emoção, isto e aquilo, o eu sei lá que mais. Não entres na empreitada de tentar analisar os códigos de discursos que pertencem somente, e solenemente, à tua esfera pessoal, não é trajecto que queiras percorrer, pelo que me esforço em alinhar o raciocínio. Eu teria feito o mesmo. Exactamente, sem tirar nem pôr. Seguiria caminho sem perturbar o teu sono. Porque voltava a pensar no mesmo? Por ser verdade, e certamente sê-lo-ia, ou para justificar, acalentar, mitigar a tua intranquilidade de espírito? Voto na última. Giro o relógio para confirmar que é hora certa. É. Ainda antes de avançar, coloco ambos os telefones em modo de silêncio, confrontando-me igualmente com a constatação óbvia de que não havias tentado contactar-me. Retiro os óculos, a etiqueta, quer do senso comum como aquela derivada do métier, obriga a que olhe o meu interlocutor em circunstâncias em que a igualdade é tida como pretensamente adquirida – o que na realidade não consubstancia qualquer verdade de facto, mas a ilusão é o que basta, pelo menos a mim nas minhas intenções mais imediatas do momento. Penduro-os, por uma haste, no pólo. A poucos passos de mim a entrada do espaço em que me relacionaria face a face com o dito interlocutor. Peço uma água com gás fresca, hoje com copo, sim: a tal etiqueta, pois bem. Deixei-te à porta, não podias entrar, são mundos diferentes, como sabes.

Sensivelmente hora e meia depois e caminhava as mesmíssimas escadas, agora no sentido inverso. Obtivera o que pretendia. Aqui não há bem nem mal, há simplesmente o factual e é com isso que trabalho, ponto final. O sol feria-me os olhos, os óculos pendiam na boca, sustidos pelo terminal de uma haste entre dentes. Feria-me também a crua constatação de que no entretanto não tinhas ligado nem enviado uma mensagem de texto, só uma havendo, do banco, a aborrecer-me com umas tretas quaisquer que promoviam qualquer coisa a que não prestei atenção a não ser, sem propósito manifesto, que remetia para um upgrade do cartão de crédito. O motor vibrava e a marcha-atrás engatada. Qual o meu espanto? Absolutamente nenhum. Agira do mesmo modo, permanecendo incontactável e não existente no teu mundo, nada fizera no sentido de escutar a tua voz ou, pelo menos, de te ler num brevíssimo texto característico do serviço de mensagens curtas. As quatro rodas rolavam no alcatrão da marginal, já conhecido por mim de cor, com destino não totalmente definido. Talvez para o Guincho. Não, antes a Capitania, depois a cidadela, só então o Guincho. As horas faziam a manhã avançar, numa marcha plácida proporcionalmente inversa à intranquilidade em que imergira, esgotado de contra ela batalhar: encontrava-me engolfado e nada agora havia a fazer que obstasse a esse estado absorto e embrenhado, conheço-me bem. Limitei-me a abusar do pedal do acelerador e a aumentar significativamente o output das colunas do rádio, como procedo, com poucas excepções, em situações desta natureza. Concentrado na condução e a pensar no que fazer nos locais de destino, tentava com a convicção possível arredar-te da mente. Precisava de ti. Precisava de ti que não estivesses presente, que apartasses. Os graves da música embatiam como ondas do mar no meu peito, prosseguia com a tua ausência. Ter-me-ás beijado antes de seguires para ir voar, estando eu no mundo dos sonhos que o sono desperta? Era um minguo consolo a que me apegara antes de te deixar abalar da minha consciência.

Regressei a casa após o ocaso, por opção deliberada. Jantara algures em Carnide, a ideia de tomar a refeição em casa sem ti pareceu-me descabida e sem propósito, sem proferir uma palavra que fosse excepto as essenciais para solicitar uma mesa, um prato, uma bebida, um café, a conta e para agradecer um serviço que, bem vistas as coisas, adquirira, pagando-o. Atirei os óculos, arremessados com desdém, para cima da mesa da sala de estar. Agradar-te-ia imenso, este meu gesto. Contudo, o que importava? Não estavas lá. Assapei-me no sofá ligando, de imediato e instintivamente, o televisor, saquei o netbook da sua minúscula pasta, demasiado preguiçoso para agora me levantar e ligar o meu portátil a sério, como o denomino por oposição ao lerdo netbook, apenas eficaz, e bastante, para trabalho de campo, com o intuito de verificar a caixa do correio electrónico, da outra, do correio de papel, nem me ocorrera sequer abri-la, e logo que (in)satisfeito baixei-lhe a tampa, pousando-o atabalhoadamente na mesa que suporta um pequeno candeeiro e uma foto nossa, acompanhada por uma tartaruga de pedra, um mocho de cristal, mais uma jarra de tipo solitário despida de qualquer ornamento – tudo composto pela tua mão. Durmo aqui hoje, confidenciei-me. E porque não o fazer? Recordava a imensa cama que para meu uso exclusivo me parecia aberrante, desprezando-a com um movimento que os meus ombros, em concordância, acompanharam. Fitei a televisão, sem a ver. Peguei no telemóvel mas desisti de levar adiante o projecto de ligar-te. Deixei-o pender até à almofada e, então, desprendi-o. Deitei-me atravessado a todo o comprimento do sofá, encolhendo as pernas. As pálpebras cederam e tu voltavas, de novo forte e cheia de ímpeto, a mim. Abracei-te no meu pensamento. Era-me confortável voltares a ser o centro das minhas atenções. Suspirei. Sinto a tua falta, disse-o bem baixinho. Sei que o sabias. Sei que me escutarias. Voltei a encher o peito de ar e a expirá-lo de uma só assentada. Ausente, vives em mim. Não tinha sono nem estava particularmente cansado. Padecia apenas da tua presença ausente.

Mantinha os olhos fechados quando a síntese do dia se realizava, virtude do trabalho dos meus neurónios aos quais não havia encomendado a tarefa, discorrendo como imagens projectadas em catadupa numa tela. Surgiu espontânea provavelmente com o propósito ou o intuito de pacificar as hostilidades que havia despoletado em mim e contra mim; desempenhava os dois papéis em simultâneo, papéis em regra assumidos por actores distintos e concorrentes que pouca simpatia nutrem um pelo outro e que, ao fim e ao cabo, acabam por se considerar inimigos, vociferantemente engajados em práticas belicosas subjacentes aos seus, amiúde, ridículos antagonismos. Ao invés de me aborrecer gozei comigo, questionando-se no meio de silenciosas gargalhadas labregas se estaria a ficar esquizofrénico ou bipolar, sabendo que na realidade nada disso acontecia e que tal se devia apenas ao labor do meu cérebro empenhado em me defender até de mim próprio. Sentei-me, puxando os cabelos para trás, com os dedos da mão formatados como uma, ainda que tosca, escova de pentear. Puxei de um cigarro que prendi com os lábios. Com o isqueiro amarelo-torrado na mão, sempre tive um fraco pelos isqueiros com tonalidades pindéricas e que as demais pessoas hesitavam em escolher para si, estaquei os movimentos impedindo-me, dessa forma, de acender aquele cilindro que dizem que mata, provoca o cancro, avilta o esperma, prejudica os demais e sei lá o quê. Contudo, a minha motivação nada tinha que ver com esses ditames assumidos como axiomas dignos de venerável aceitação sem apelo nem recurso. A razão era única e sei-a bem. Repugna-me o que chamo de cheiro a tabaco morto e uma vez que me dispusera a pernoitar na sala dispensava essa sensação de náusea e nojo que certamente se prolongaria noite adentro. Coloquei o cigarro entre dedos, semi-dobrados, com o filtro voltado para o exterior. Silenciei o televisor sem sequer me ter dado ao trabalho de para ele erguer o olhar. Acendi o candeeiro da mesinha adjacente ao sofá apagando, por seu turno, a luz provinda das lâmpadas do candeeiro de tecto. Dirigi-me para a cozinha, encerrando a porta à minha passagem. Vi-me forçado a três tentativas até ser bem sucedido, há já algum tempo que me prometera arranjar aqueles puxadores, mas como muitas outras também esta promessa permanece ainda encerrada na gaveta das minhas boas intenções. Iluminei o exaustor por cima de um fogão que aos meus olhos me parecia merecedor de reforma, pese embora não conte ainda assim tanto tempo, mesmo em idade de fogão. A luminosidade que aclarou a cozinha era ténue e quase tímida, em conformidade com a minha disposição. Não fora por obra do acaso que preterira as irritantes e agressivas luzes de tecto, tradicionalmente afectas ao imaginário popular do que têm que ser luzes de cozinha, pela plácida claridade proporcionada pelas duas lâmpadas incrustadas no exaustor. Obriguei a deslizar, contrariada, uma das janelas. Por esse espaço observava com melhor discernimento o negrume que se instalara nesta parcela do mundo e que apenas era interrompido pelo brilho dos candeeiros de rua, coadjuvados por interpelações luminosas espaçadas sem qualquer harmonia de outros fogos da vizinhança e, claro está, pelo terno cintilar das estrelas ancoradas no manto celeste. Agradou-me igualmente a suave e fresca brisa que irrompia pelo espaço, em particular quando me tocava o rosto, provocando pontuais arrepios que se espraiavam essencialmente pelo pescoço e pelos braços. Tornei a colocar o cigarro na boca, após o qual repeti o movimento de puxar os cabelos para trás. Interrogo-me porque danada razão farei eu isso, que cada vez tenho menos, menos cabelo. A chama do isqueiro bamboleava ao sabor da brisa e fez arder o tabaco do cigarro, cessando-se a partir desse momento e retornando o objecto a gás ao bolso mais pequeno das minhas calças de ganga meio encardidas. O fumo expelido pela boca vagueava incerto até se dissipar no infinito da noite, semelhante a uma tímida imagem de nevoeiro que se esmorece languidamente sem que os nossos sentidos consigam acompanhar devidamente esse aparentemente simples porém complexo processo. Repeti o gesto algumas vezes. No entretanto, o meu cérebro não se encontrava ocioso. Bem pelo contrário, despendia a maioria das suas energias a pensar em ti. Como estavas longe. Contudo, apenas a pouco mais de uma hora de avião; ou menos. Como estavas longe. Essa distância, letárgico debrucei-me sobre as mais variadas hipóteses, dever-se-ia aos quilómetros que entre nós se entrepunham ou seria resultado de uma clivagem contada noutro tipo de medida? Larguei o couto do cigarro num pequeno cinzeiro circular de vidro, possivelmente mais velho do que eu, surripiara-o do espólio de tralha de casa dos meus pais, ao qual acrescentara uma ligeira quantia de água entendendo que a brasa a fumegar no cigarro vorazmente consumido se apagasse de imediato, evitando que mais fumo se espalhasse pela cozinha e restantes divisões do apartamento, mitigando o nojento odor que um cigarro acabado de apagar exala. Coloquei de imediato outro novo cigarro na boca, como se esse gesto acelerasse a minha capacidade de pensar, concorrendo para um célere desvelar do que não conseguia, por jeito algum, desvelar. Mera ilusão, nenhuma velocidade era adicionada àquela que era natural das minhas sinapses. Não o acendi. Deixei-o estar, a pender dos lábios, ainda que lhe tenha suavemente trincado o filtro quando instintivamente me deu para cerrar os queixais. Não seriam os quilómetros uma desculpa adequada e racionalizada para justificar o distanciamento que vivia e experenciava com angústia? Uma metáfora, sim. Estaríamos nós a permitir, ou até mesmo a participar activamente, que o abismo nos cingisse? Foi o clique que precisava para ir buscar o isqueiro e acender este outro cigarro. Conservei o fumo inalado por quanto me apeteceu suster a respiração. Deseja eu suster o mundo, o nosso mundo, colocá-lo em pausa? Expeli o fumo com o olhar perdido a contar estrelas e desmotivado com a plausibilidade da minha última interrogação. Tossi, mais por me ter engasgado com a minha própria saliva do que propriamente pelo efeito, nefasto, já o sei, do fumo que atravessara em dois sentidos a garganta concomitante arranhada. Cotovelo assente na pedra do parapeito e o polegar a suster, pelo apoio na sobrancelha, a cabeça. Pois, afinal estava mais perdido do que julgara. Estava esclarecida a minha intranquilidade, lutava por nós, e comigo, sem de nada te informar; para quê incomodar-te com os meus pensamentos neuróticos se nem eu sabia o que eles me pretendiam transmitir. A dúvida instalara-se ramificada. O cigarro foi de encontro ao cinzeiro. Permaneci estático a olhar a lua lá fora, em crescente, apático e sem reacção.

Temia pensar ainda mais sobre o assunto. Doía-me pensar. Como gostava que a nossa casa pudesse oferecer vista para o mar…

terça-feira, 24 de julho de 2012

o espelho não mente (?)

"Take a look at my girlfriend
She's the only one I got
Not much of a girlfriend
We never seem to get a lot"
('Breakfast in America', Supertramp)

Não se encontram propriamente na minha lista de musts. Todavia, sempre apreciei a entrada da letra desta música em particular. Por curiosidade, fui repetindo e reproduzindo essas mesmas palavras, ou outras que similares, com uma irritante e constante cadência a todas as minhas (ex-)namoradas, ou pelo menos àquelas que de facto são dignas de ainda permanecerem na minha memória - daí se infere a sua incontestável prestação em distintas representações no decurso da minha vida; outras, poucas e votadas a um esquecimento perene, provavelmente nunca usufruiram de estatuto nem de solenidade merecedoras do elogio. Para meu desagrado, e porque não desilusão?, as realidades com que me confrontei acabaram inevitavelmente como corolário do sustentado, realizando-se, em certa medida, a profecia.

Ao leitor mais incauto, já prestes a arremessar a primeira pedra por indignação ou devido a eventual leitura de um chauvinismo inerente à minha pessoa, sugiro que tenha um pouco mais de paciência e compreensão, já que nada é tão simples ou superficial como indicia a mera aparência: é que a isto, a funcionar, aplica-se-lhe o denominado efeito de espelho. Quer isto dizer, exactamente o princípio da reflexividade. De outro modo, recorrendo a uma construção frásica alternativa, quando sugiro a aplicabilidade desta qualificação tipológica e adjectiva implico-me reciprocamente na mesma. Em súmula, o que afirmo, por vezes a título de gracejo e outras numa tonalidade literal, ou mesclando ambas, remete igualmente para a consciência, diga-se em abono da verdade que bem manifesta, de que eu próprio o sou, com o verbo no masculino. Retomemos o espelho. Quando lhe imputo uma determinada categorização, e.g., not much of a girlfriend, obtenho de imediato o feedback que aponta, me aponta, exactamente igual, invertido, neste caso, somente o que remete para o género; de longe não o melhor dos namorados, também eu omisso no que respeita aos atributos e qualidades mormente buscadas pela percepção ideal-típica do papel de valentino.

Muito apreciaria não mais (ter de) fazer uso dessas palavras. Talvez. Porém, desta, o cepticismo leva-me de vencido. Mas não inevitável ou fatalmente derrotado.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

essencial ou acessório?

Vamo-nos auxiliando nos nossos projectos profissionais. Tendemos a olvidar tudo o que remanesce, inclusive, ou principalmente, o mais importante. É impossível encontrar equilíbrio na perfeita imperfeição do ser humano; nossa condição, nosso pecado capital, nossa essência.

sábado, 21 de julho de 2012

prioridade (não?) distorcida

Estou cada vez melhor no meu trabalho. Concentrado, enfocado, pragmático, alheado do demais e até acintoso. Progressos conquistados. Maior confluência com o objectivo. Mecânico. Pior pessoa.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Perspectivas

Hoje, por fim, foi o último dia com lentes prismáticas. Já ofereci as minhas boas-vindas às de recorte regular. Satisfeito, sim.

sábado, 14 de julho de 2012

lost & found

Para ti.


"If you walk away, walk away
I walk away, walk away
I will follow
I will follow"

domingo, 8 de julho de 2012

fragmentos

- Quando voltas?
- Talvez nunca tenha existido.

"O desejo de ordem é ao mesmo tempo desejo de morte, porque a vida é perpétua violação da ordem."
'a valsa do adeus', milan kundera

sexta-feira, 6 de julho de 2012

entre a emoção e a razão


Sétimo piso, o ‘chefe’ a aguardar. Melhor, seria eu a aguardar por ele. Como de costume estava com alguém no seu gabinete. Não lhe ouvira a voz, mas fora informado que estava reunido com alguém, alguém esse de que não guardo a mais pálida recordação. Sentado no sofá, olhei em redor. Tudo igual por ali, pelo menos parecia-me. Extrapolei, considerando que o normal é que tudo se mantivesse igual por toda a Lisboa. Sabia-me a exagerar, contudo essa sensação montada a partir de uma generalização dúbia e grosseira era do meu agrado, pelo que a deixei tal qual instalar-se a seu conforto no meu pensamento. Enquanto mantinha o  olhar, agora algo perdido e em devaneio, a cruzar o espaço que me enleava, martelava os dedos da mão direita num caderno de notas, curiosamente adquirido aquando da deslocação à cidade do Porto: há quem lhes chame, a estes fenómenos, sinais, predilecções de um destino que nos ultrapassa; outros preferem dizê-los signos, cujos significados e significantes devem ser criteriosamente analisados, decompostos e categorizados; eu opto por denominá-los por acaso, conceito que tomo de empréstimo a Boudon e que me ficou caro desde os tempos em que frequentava o curso de licenciatura. Reparei no ruído provindo do contacto entre as extremidades dos meus dedos e a capa do caderno, correlacionando de imediato este batucar com o estado de ansiedade que se apoderara da minha vontade. Nada de anormal quando estamos incertos se o ‘chefe’ manifestará aprovação face ao trabalho, ainda que muito parcial, entregue ou se, pelo inverso, discorrerá sobre as mais minuciosas incorrecções com que se deparara ou até mesmo se bradará que o que fora entregue nada mais era do que um leque de banalidades superficiais, de trivialidades mal trabalhadas e desajeitadamente recolhidas num processo em que nada se ganhara, antes tendo-se perdido tempo precioso acrescido por um desperdício de qualidades que me vai reconhecendo em uma ou outra ocasião. Sorri por dentro, como se costuma dizer – Como será que o nosso organismo pode sorrir por dentro? Não será uma tolice, uma patranha da pior espécie, inventada por poetas populares inebriados pelo torpor letárgico provocado pelo consumo de irresponsáveis medidas de álcool entre tascas sombrias e casas de pasto de duvidosa integridade? Em resposta a este raciocínio, voltei a sorrir por dentro, desta feita forçando a racionalidade a partilhar a sua sobranceria com o espírito folclórico. Afinal sorrir por dentro é belo, para além de que soa bem. Sorrir por dentro, como se alma manifestasse o seu júbilo sem que o corpo, por gestos seus, a denunciasse.

Entretanto, da sala do emérito ‘chefe’ escutavam-se, ainda que muito ao fundo, duas vozes cujo tom se elevara e que pareciam engajadas numa dança ritual de quem se despede e que canta até outro dia que por hoje finda-se o tempo. Por outras palavras, a reunião estava concluída e agora cumpria-se a etiqueta das boas regras. Não tardaria muito até que ouvisse as palavras do senhor emérito, cumprimentando-me, convidando-me a entrar e desculpando-se pelo atraso que teima em persistir em quase todos os nossos encontros. Antes, dirigi as minhas cogitações na tua direcção. Sentia uma irresistível tentação de procurar ao senhor emérito algumas informações tuas, particularmente dos tempos em que ainda não te conhecia, porém sustive-me já que estava convicto de que tal façanha poderia ser do teu completo desagrado. Estranho, foste tu primeiro a buscar informações sobre mim de forma sub-reptícia, esclareça-se, investigaste o meu passado na esfera do trabalho, o que eu havia produzido ou aquilo que por inabilidade me havia redondamente esquecido de produzir, e disseste-mo descarada e abertamente na cara, frente-a-frente, finalizando com um espero que não se importe, caso se importe, então as minhas desculpas, até me escutares a dizer-te não se preocupe, não tem qualquer importância, com um sorriso tão estúpido quanto tolo cinzelado no rosto, irremediavelmente desarmado pelo tão simples facto da tua presença. E ali estava eu a debater-me com uma crise ética, a digladiar-me com princípios morais, a esgrimir considerações sobre atitudes correctas e aquelas outras que nem por isso. As pessoas são estranhas. Não podemos confiar nelas, se bem que são as únicas em quem podemos confiar. Hábil e estranho paradoxo, contudo nada de inverdade em si. É assim mesmo, a estranha – mas tão deliciosa – condição humana; logo Arendt se assomou aos meus considerandos em silêncio, que mulher bestial deverá ter sido, para mais numa época em que muitas portas estavam ainda teimosamente enferrujadas face à pertença de género no feminino, se bem que tal situação decorresse já em pleno século XX… faleceu antes de teres sido dada à luz, concluí sem no entanto saber o porquê ou a relação desse facto com os acontecimentos que eu e tu vivemos presentemente no nosso presente. Ergui a face para a porta acompanhado com os globos oculares os movimentos muito mais pragmáticos daquele homem que admiro acima de quase todos, estejam ainda a rodar pela terra ou tenham sido alimento de vermes há vários séculos passados, e que amistosa e amigavelmente me convidava a entrar, visivelmente entediado, contudo coisa que sabia não dever-se nem à minha presença nem aos motivos da minha visita. Estava mais do que decidido: não lhe perguntaria nada sobre ti, nem mesmo se estivesse no seu poder uma fórmula de desvendar os mais misteriosos segredos de uma vida inteira – estava a deixar-me arrastar pela minha vertente dramática, que tanto adora fazer uso da sua pseudo-prodigiosa imaginação, quando o que necessitava era de concentração e da minha máscara de actor no meu métier. Entrei no gabinete, deixando-te à porta sem a menor das hesitações, apertámos as mãos e finalmente poderíamos opinar sobre aquela parcela de um trabalho a e por concluir.

Pouco seria o tempo à nossa disposição, numa questão de quinze a vinte minutos teríamos que estar numa sala de outro edifício: um para introduzir um conferencista basco de renome, outro, eu, para assistir à palestra. Ainda assim, nesta míngua de tempo, ousaste tentar aflorar o meu pensamento. No entanto, sem piedade nem remorso, extirpei esse assomo da minha existência ali naquele momento. És teimosa, sabes? Bela, cândida e plácida; tenaz, decidida e vigorosa, sempre com o véu das primeiras a cobrir estas últimas. És mesmo bem teimosa, sabes? Já to disse. Não te desculpaste com lugares comuns do tipo é o meu feitio. Assumiste e retorquiste: somos os dois, embora de maneiras bastante distintas. Tens razão. És tão teimosa. Mea culpa, também o sou. Sorriste e beijaste-me, puxando-me com os teus braços provocando o toque mimoso dos nossos corpos ainda vestidos. Foi um beijo de verdade, não foi um beijo de tréguas. És teimosa, mas tens dificuldade em mentir e até o teu corpo se ressente quando o fazes, comunicando na sua linguagem que algo incómodo o atravessa. Não mentias, não. Foi um beijo de verdade. E os teus braços, algo magros, como os meus, capturaram o meu torso para que também os nossos corpos, à sua maneira, se beijassem. Não tinha muito a acrescentar, aliás nenhuma crítica de monta, o que aliás me deixou enormemente satisfeito. Queria apenas sugerir que enriquecesse o trabalho com isto e aquilo e mais aqueloutro, sugestões brilhantes, admita-se, dignas de um homem ao qual reconheço valor e mérito muito para além da mera escala profissional – sinto-me orgulhoso por me ter aceite no seu círculo, jamais se dirigindo a mim com prepotência ou complacência, tratando-me como um igual cuja falta maior seria a escassez de experiência e não o potencial formal. Anui, evidentemente. Sugeri, inclusive, que se poderia ir mais longe, que seria possível executar-se um maior desdobramento no que propunha. Acenou afirmativamente. Por esta hora devia estar a apresentar o basco; ele, não eu – eu iria ser um espectador. Deixáramos para trás o edifício onde se tinha previsto o nosso encontro. Interpelávamo-nos agora estacados no interior de um outro a aguardar, com a pouca paciência a que podíamos apelar, pela chegada do elevador. Nem eu nem ele estávamos dispostos a galgar os degraus até ao quarto andar de mote próprio se podíamos muito bem esperar que uma máquina o fizesse sem o menor esforço. Posto isto, para concluir, o que tem não está nada mau, está bom e interessante; agora é continuar e ir angariando progressos – disse-me, informando-me que estava concluída a conversa do motivo que em primeira instância me conduzira à sua presença, naquele espaço tão específico e singular, tão prenhe de significados. Saíamos do elevador em direcção à sala reservada à conferência onde o actor principal já aguardava pelo seu colega de carreira, que o introduziria aos presentes. Reconheci poucas faces e depois de uma informal e mútua pancada nas costas ou no ombro, a comunicar um até já, dirigi-me a uma cadeira vazia e ocupei o lugar situado algures na segunda ou terceira fila, falha-me a memória; na segunda, estou certo disso.

O ‘chefe’ abandonou a sala. Compromissos inadiáveis exigiam a sua presença. Já lho disse, anda a abusar; se entrou a cem, saiu a trezentos. O senhor basco, é verdade. Um slide show incontável, mesmo que eu me tivesse dado ao trabalho de os contar desde o primeiro. Contudo, não lhe estou a fazer justiça. Profissionalíssimo muito além do que a profissão lho exigia – e nós, já agora, que assistíamos com a atenção que fez por merecer. De quando a quando baixava os queixos de forma a que o meu campo de visão abrangesse os marcadores do meu relógio afincadamente preso ao pulso. Parecia-me invariavelmente, ilusão de um tempo dito psicológico, que os ponteiros se encontravam na mesma posição, preguiçosos em querer trabalhar, mais preguiçosos do que eu, o que não é dizer pouco. Já sei, se me ouvisses dizer isto censuravas-me com o olhar e ficarias meia hora a dissertar sobre o que é a preguiça, o que devia e não devia fazer, como exagerava e em simultâneo não exagerava. Calar-te-ia com um beijo. Não resultaria. Logo voltarias à carga, fizesse eu o que fizesse, dissesse o que dissesse. Tens o teu timing interno que respeitas escrupulosamente, só findarias quando a tua vontade determinasse que desejava ficar por ali, mais do que satisfeita e saciada. Teimosa, sabes? Nem assim deixaria de te dar esse beijo, porque sim. Teimosos os ponteiros. De nada valeria acelerá-los artificialmente, o tempo é-nos exterior e está-se marimbando para o que o meu relógio diz ou deixa de dizer; o meu e o de todos os outros. Em tom coloquial confidenciei para mim próprio: tens que te aguentar à bomboca. Pelo menos a temática era interessante e o facto de ser falada em castelhano sempre quebrava um pouco com o ritmo pardacento de um dia inteiro, como o são quase todos os dias regulares, a escutar e a verbalizar palavras e frases no nosso português; não me entendam mal, aprecio muito e tenho todo o respeito pela nossa língua materna. Nisto voltavas a mim e eu a esforçar-me por ouvir o senhor vindo propositadamente da metrópole de Barcelona. Era a minha vez de teimar e disse-te que ali não era o teu lugar. Curiosamente acabei por constatar que até seria, contudo acabei por ficar morbidamente feliz por ali não te encontrares – de não te encontrares a sério, fisicamente, e não como produto da minha mente –, evitando-se assim que o nosso mundo profissional nos colocasse numa posição com a qual não me quero debater. Devagar, a passo de caracol engripado, a conferência avançou para o almejado término. O ‘chefe’ regressou, pontual que nem um britânico, cabia-lhe ainda a tarefa de moderar o debate que se seguiria ao que fora comunicado. A minha satisfação tornou-se irreprimível assim que ele atravessou aquelas portas. No máximo mais trinta minutos, quarenta, dado que o senhor basco permanecia imerso nas suas palavras. Duas horas e quarenta e cinco minutos após ter entrado, juntamente com o senhor emérito, naquela sala fui ao rubro ao ouvir os primeiros aplausos. O basco agradecia, como obrigam os bons modos. Deu-se início ao debate, ou, por outra, o senhor emérito deu início ao debate – ao abrir das hostilidades, como eu prefiro denominar este momento preciso. Um ou dois quartos de hora e estaria livre daquela cela, voltaria a ser um indivíduo livre a fazer o quer que seja que os indivíduos livres façam; o que amiúde, convenha-se, não é muito. Todos erguidos e prestes a abandonar o local, eu entre os mais desejosos, lá nos fomos paulatinamente movimentando. O emérito e o basco conversavam entusiasticamente, bati levemente no blazer do emérito e à saída da sala saudei-o em despedida com uma espécie de movimento de mão em continência. Em retorno, recebi a palma de uma mão levantada e um olho piscado; ainda não satisfeito, apontou-me o dedo e, alto, depois falamos, hã? Claro, retorqui. Teimosa, podes voltar? Desço pelas escadas para compensar a cobardia de, antes, não as ter subido. Tento sair pelas traseiras, o senhor segurança diz que não, que a porta está já trancada e que não tem chave, que terei de sair primeiro para o passeio da avenida e só depois de umas dezenas de metros poderei reentrar, agora pelo portão principal, de encontro ao edifício onde inicialmente estivera, o tal do sétimo piso, descer alguns lances de escadas ao encontro do automóvel. Podes regressar, teimosa? Sorrio. Por dentro e por fora.

Apreciava com antecipação o regresso ao teu amplexo, ao teu beijo morno. Era tarde e anoitecia a olhos vistos. Pensei que quando chegasse a ti já o lusco fusco teria abandonado o céu e o manto de estrelas reinaria por cima das nossas existências. Coloquei a chave na ignição, esfreguei a testa cansada daquela tareia de intermináveis horas passadas naquele lugar. O motor indicou-me que estava pronto, liguei os médios como sempre faço quando entro ou saio da garagem do edifício. Fiz fé de que o carro, a par de mim, conhecia o trajecto a percorrer. Marcha-atrás, primeira, quero-te; tanto…

Adormeceste no sofá, agarrada ao meu braço e com a cabeça a ele encostada, praticamente logo após termos jantado. Senti que estavas exausta, por mais que me tentasses distribuir sorrisos e piscadelas de olho marotas, por entre o manuseamento dos talheres, dos copos e de outros que afins. Não contrariei a tua vontade, permiti julgares que me iludias – embora, no âmago, soubéssemos os dois que apenas teatralizávamos, como dois fantoches encantados a representar os seus papéis numa caixa e no seio de um mundo de fantasia, respeitando-nos mutuamente, a nós e ao que somos; temos muito para crescer, não o ignoramos porque não somos tolos nem ingénuos, mas tal faz parte e aceitamo-lo serena e placidamente, ouso até asserir que o desejamos com o tamanho das nossas forças que individuais se unem para a concretização de objectivos comuns e partilhados. Confesso-te, já sinto a dormência do meu braço a alastrar e a tornar-se inconveniente para além do aceitável. Pelas minhas contas, grosso modo, mais de três horas se foram desde que ligaste a minha televisão, que agora também é tua, e poisaste a cabeça no meu ombro, encolhendo o mais do resto do teu adorável corpo para que coubesses, comigo, semideitada nas almofadas do sofá. Não lhe ligaste peva, à televisão. Era indiferente o canal sintonizado, pois era-te indiferente qualquer conteúdo que o ecrã lcd pudesse projectar nos teus olhos de castanho-mel. O cansaço dominou-te e venceu – embora só por hoje, digo-te eu que te chamo minha. Pesa-me o coração por ter de te despertar, mas quero-te mais confortável, desejo que o teu sono aconteça onde deva ser para que de facto repouses a fim de que, mais tarde, te reergas com energias plenamente recuperadas ou, pelo menos, lá perto. Tens um sono bem pesado, sabes criatura teimosa? Ignora o ruído da televisão, cujo volume, apesar de tudo, já diminuí após uma prolongada batalha para me apoderar do comando sem te perturbar, ignora o disparo violento e sonoro da ventoinha do meu portátil, ignora a minha tosse teimosa por causa de uma garganta irritada, questiono-me se não ignorará inclusivamente todo o mundo excepto aquele feito de sonhos para onde te levou. Quase não sinto o braço e só devido a um esforço mais do que considerável é que continuo a conseguir teclar com a mão esquerda; com a direita aproveito para afagar o teu cabelo, para tocar levemente o teu rosto. É imperativo acordar-te, desculpa-me. Quem me dera que houvesse outra forma, mas não há. Tenho mesmo que o fazer, por mais que deteste, que abomine a ideia. Antes, porém, sussurro-te um desculpa do qual nunca terás conhecimento. Provavelmente dirigi-o a mim, não estou certo. Já não estou certo de nada; ou antes, estou mas de pouca coisa. Começo igualmente a ficar baralhado e sinto areia nos olhos.

É com agrado que estou de regresso aos textos mais longos. Devo-o a ti. Estou-te grato, sim. Talvez um dia, quem sabe, te fale deste blogue. Não hoje, isso é garantido. Já dormes novamente e no mobiliário apropriado, pelo que fico satisfeito. Não te zangaste por ter interrompido o teu sono. Esfregaste teimosamente um olho até à sua coloração avermelhada se tornar mais acentuada e sorriste para mim. Tentaste regressar à posição em que estavas, o que entendi mal agarraste com as duas mãos o meu braço. Não permiti, no entanto, que poisasses a cabeça. Cama, imperativo mas delicado, transmiti-te. Zombie lá caminhaste, trôpega, deliciosamente ensonada e sem jeito nenhum a andar. Senti ainda mais ternura por ti. Num fôlego ergui-me e servi-te de amparo até ao quarto, onde te deixei sentada na cama para vir terminar estas linhas e desligar todos os aparelhos que, teimosos como tu, pareciam ter vontade em ficar ligados. Falta só encostar a tampa deste portátil. Fui observar-te, já dormes, tão sossegada como canta o Palma, e um novo assomo de ternura percorreu todo o meu corpo. Falta encostar a tampa deste. Não demora. Já me junto a ti.

domingo, 1 de julho de 2012

património intangível

Havemos de compreender que erigir templos, seja ao que for, de pouco ou nada serve. Todavia, destruir uma abstracção é virtualmente impossível.
Zzz...