sábado, 21 de maio de 2011

Os filhos da cidade

Onde ando eu, que não me consigo encontrar? Perdido algures na pele de alcatrão e cimento desta cidade que tanto amo, Lisboa. Talvez ande às voltas, desenhando círculos e regressando sempre com a mesma inevitabilidade ao lugar donde partira. Que faço? Nas entranhas do meu carro vejo outros tantos semelhantes; vejo gentes com olhos vítreos a arrastarem-se pelos passeios que marginam as estradas e, pontualmente aqui e ali, observo nos olhos de um estranho o emanar da felicidade – são os únicos que se distinguem verdadeiramente do resto da manada e que têm uma aparência humana completa e que vivem ao invés de se limitarem a existir. Ainda no carro, com a testa a querer suar pela temperatura quente que se faz sentir, reviro-o com os olhos: o volante já gasto, estofos queimados por beatas que não atirei pela janela com sucesso, três ou quatro garrafas de plástico ainda com alguma água na barriga, uma radiografia tirada faz muito atirada para os bancos de trás e papéis, vários papéis imprestáveis, fazem de tapete a pés que ali queiram assentar; o banco do lado, o banco ao meu lado, vazio. Nem os fantasmas lá vivem, partiram e deixaram-me só. Nem suspiro, volto a colocar os olhos na estrada, olhos cujos únicos estímulos são o negro do tapete da estrada, o plástico do pára-choques dos outros, luzes que piscam e luzes que se mantêm firme e teimosamente acesas; os meus olhos estão perdidos, notam todos estes estímulos mas a verdade é que não estão lá, como também não estão em sítio algum: estão como eu. 

Outros estímulos que arrepiam o meu corpo são os sonoros. Do interior do automóvel é o auto-rádio que fala e canta, só não dança, desde que dou à ignição até rodar a chave em sentido inverso. Poucas vezes me dou ao trabalho de colocar um cd, pelo que deixo às estações da rádio o ditar daquilo que me irá penetrar pelos ouvidos. Uma vez por outra há uma melodia que me eriça os pêlos e, por breves instantes, volto a estar onde todos estamos. Já sou quase que inteiramente indiferente aos ruídos dos tipos que adoram ter a mão na buzina, entra por um lado e sai ainda mais depressa pelo outro; por vezes dou por mim a encolher os ombros, mais raramente com vontade de explicar a um ou uma condutora que o meu carro não é primo do Pégasus e que por isso não tenho asas que me façam voar – mas quase sempre permanece o silêncio, cansa-me o simples facto de ter de comunicar com alguém principalmente quando esse alguém, autista, não está disposto a escutar. Então, volto a fechar-me em mim mesmo, na minha redoma em moldes de cidadela, e volto a fugir da realidade. Posso nada fazer em relação ao meu corpo, todavia a minha mente transporta-se para outros lugares que até de mim são desconhecidos – voa para longe, para outros tempos talvez… 
Dou comigo sentado numa esplanada de praia. Afinal era mesmo para aqui que eu queria vir; ou que me constranjo a vir no cumprimento de obrigações estabelecidas. Há qualquer coisa no mar que me sossega, apazigua-me o ser, embala-me como se eu fosse pequenino. Olho-o sem que me canse. Se a indumentária que cobre o corpo fosse outra sem dúvida que iria sem parar um instante para pensar até junto dele, caminhando por onde a areia está molhada do salivar oceânico. Por vezes tenho que me conter para não arregaçar as calças, quase sempre de ganga, para não desabotoar a camisa até ao seu derradeiro botão, para não tirar os ténis ou uns sapatos de vela, para não ir sentir o mar acariciar-me as ferraduras também sem meias, desnudadas e ávidas por serem tocadas; até aos tornozelos, porque não, deixaria que o sal arrepanhasse os meus pêlos até à vinda de nova vaga de água fria – e repeti-lo-ia mil vezes ou mais. Contemplaria, então, com o sol a coser-me a pele desnudada, a linha do horizonte onde o mar parece querer beijar o céu antes de com ele se enrolar na maior das volúpias, deixando-me confuso por não mais conseguir distinguir qual é qual – confuso, sim; todavia, profundamente sereno; e sentir que, afinal, a vida é boa de se viver.


"Well... you didn't wake up this morning
Because you didn't go to bed
You were watching the whites of your eyes
Turn red
The calendar, on your wall, is ticking the days off
The calendar on your wall is ticking
the days off
You've been reading some old letters
You smile and think how much you've changed
All the money in the world
Couldn't bring back those days.
You pull back the curtains, and the sun burns into your eyes,
You watch a plane flying across a clear blue sky.
This is the day - Your life will surely change.
This is the day - Your life will surely change.
You could've done anything - if you'd wanted
And all your friends and family think that you're lucky.
But the side of you they'll never see
Is when you're left alone with the memories
That hold your life together like
Glue
"

'This Is The Day', The The

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