segunda-feira, 10 de setembro de 2012

ausências evidentes, take II


Puxei do telefone apenas com a finalidade de confirmar a hora certa. Amanhecera há bastante e eu havia dado conta disso. Seis e meia da matina e nem um minuto dormido. Nada disto me surpreenderia se remontasse aos meus quotidianos de há dois pares de meses, mais ou menos isso. Todavia, desde que vivemos no nosso regime de comunhão que decidi, com um hábil sucesso cuja explicação me ultrapassa, encurtar drasticamente no meu tardio horário de recolha ao leito. Não sempre, conheces bem as excepções que sucedem com particular ênfase nos momentos em que permito que o trabalho se acumule até que pilhas de livros e de outros documentos se edifiquem desde o chão até ao quase contacto com o tecto ou naqueles em que os timings apertam até ao seu praticamente impossível cumprimento. Curiosamente, e simpático da tua parte, deixaste cedo de barafustar comigo e com a entropia que aqui e ali vou acometendo no espaço quarto a que preferimos chamar nosso escritório. Compreendeste-me e soubeste quase de imediato que essa era uma constante da minha essência, o meu modus operandi por assim dizer, e sem julgamentos de monta aceitaste-me como sou no amplexo delico-doce do nosso relacionamento. Percebeste o quanto isso era importante para mim e que no entremeio do caos que levantava à minha volta me entendia como se estivesse a viver imerso no meu habitat natural; provavelmente até será verdade... Não é propriamente a tua maneira de trabalhar contudo, de alguma forma, aceitaste por analogia e sem hesitações de maior que tal como tu tens o teu método é perfeitamente lógico que eu tenha o meu, por, passando a redundância, mais ilógico que te apareça à compreensão preconcebida; dou-te enorme valor por essa tua capacidade, sei que não é fácil interagir com alguém assim, quanto mais conviver, e já passei, inclusivamente, por algumas experiências bastante amargas cujos desfechos me vou abster de elucidar e de comentar. Mais ainda, captaste com uma impressionante lucidez que careço de momentos exclusivamente dedicados a mim, na mais egoísta das acepções. Pese embora esta contra-regra, a prática comummente estabelecida, mais por acordo tácito do que pela força de forçadas negociações, dita que nos deitemos apenas com intervalos breves entre ambos ou que o façamos em primorosa sincronia. Existem ainda outras excepções, pois. Todavia, essas não dependem por inteiro da nossa vontade e estão inapelavelmente associadas à nossa prática profissional. Falo, claro está, das ausências a que somos obrigados e que se consubstanciam em deslocações a outros pontos do país ou aquelas além-fronteira – onde nem sempre, ou quase nunca seja mais bem dito, nos podemos fazer acompanhar um ao outro; as justificações para essas viagens a sós são imensas e vou escusar-me a enredar nelas. Porém insisto: quando as luzes, seja a dos candeeiros de cabeceira ou da televisão do quarto, se apagam até ao outro dia é fácil um saber onde o outro se encontra, bastando escutar aquela respiração que não a nossa, o cheiro que é o do outro ou um estender num movimento os membros que chocarão amigavelmente de encontro ao corpo do ente querido; acrescentaria, no meu caso, ao desmesurado ronco de ressono de que te queixas com cara de má traída pela séria postura brincalhona com que as tuas formas ficam, à guisa da ternura que me tens, esculpida. Seis e trinta. Era um desses momentos de ausência.

Ergui-me sem sobressalto mas definitivamente decidido. Após ter poisado com cuidado o telemóvel, smart phone como se lhes dirigem alguns, levei paulatinamente ambas as mãos ao rosto cobrindo-o, ou essa foi a sensação que se me instalou, por completo. Talvez estivesse a habituar os olhos à parca luminosidade que penetrava no nosso quarto, o mais íntimo dos nossos espaços – ou talvez não, sei lá, foi o que me ocorreu pensar na altura. Despi a t-shirt de dormir, digo que as tenho de ir à rua e as para dormir, num gesto de rompante e meio inconsciente e experimentei algum alívio face ao desconfortável calor que sentia. Esfreguei os olhos, apesar de nada ter dormido suponho que estivessem algo remelosos, e compus os boxers enquanto caminhava meio zonzo em direcção ao escritório. Fechei com cuidado as portas, a do quarto de sono e de sonhos e a do escritório onde tive de me desviar da tralha costumeira para assomar à janela e ao malfadado maço de tabaco, já que os vizinhos são gente boa que merece a minha consideração e, para mais, respeito as poucas horas de sono que agora lhes são permitidas pois que recentemente acrescentaram um pequeno e exigente membro à família; felizmente as paredes, ou o que for para além destas, são de boa qualidade e raras foram as vezes em que realmente escutei o choro que tanto apela ao consolo próprio de uma criança que conta somente com algumas semanas de existência: bem-vindo ao mundo, puto.

Inclinado no parapeito a tentar acender um cigarro e com as capacidades mentais ainda excessivamente dormentes procurei com os olhos a Lua. Acendi o cigarro. À Lua confesso não a ter visto, teria já dado a volta ao horizonte. O Sol, esse, brilhava plácido e tímido. Também ele, como eu, deveria ter sono, pensei num devaneio pueril mas que de certa forma me acalentou o espírito. Sorri com a trivialidade do meu pensamento e quase me engasguei com a porcaria do fumo do cigarro que ia queimando, entre dedos, na minha mão esquerda. Estarias tu na terra dos sonhos? Com certeza que sim. És muito menos propensa a este tipo de deambulações nocturnas, madrugadoras seria mais exacto, do que eu. Sempre com os quilómetros que nos separavam em mente fiz por imaginar-te na tua cama do Porto, sossegada, serena, premissa irrevogável quando dormes. Voltei a sorrir, desta feita devido à tamanha estupidez do sentido que permitira ao meu pensamento; ou, admito, que a ele se tenha imposto por consequência das minhas imensuráveis inseguranças e da precária auto-estima que me caracteriza. Dormirias tu sozinha, sempre, tal como eu, quando os deveres nos infligem a obrigação destas cisões para mim invariavelmente indesejadas? Expeli a última baforada de fumo sugada do cigarro que deixei cair no cinzeiro de vidro com um risco de água antes de me entregar ao exame da bacorada pensada. Vivemos em tempos incertos e de risco. A literatura da especialidade é prenhe em considerações sobre este fenómeno; estes fenómenos. Estamos bem cientes e mais do que avisados para a realidade das vidas que cada vez mais se vivem com urgência, no imediato, espúrias face às gerações antecedentes, pressionadas por processos de individualização encarrilados pela sociedade do consumo e do prazer inadiáveis que repudia o esforço e até mesmo, amiúde, o mérito. É esta a profecia para as nossas gerações e creio que engolimos o engodo sem um único apelo nem à consciência nem à razão. Somos portanto os portadores do pecado que aceitámos como fardo sem contabilizar prejuízos mas tão somente a realização instantânea. Pareceu-nos o oásis no deserto, mas escusámo-nos a ponderar como atravessá-lo por completo desprovidos da bagagem adequada – com a crença inabalável de que outros oásis surgirão pelo percurso sempre que entendermos, simplesmente pelo facto de nos é devido, como que por um qualquer direito divino agora reificado. Perco-me a divagar e sou omisso na resposta que (não) me quero dar. O dia já é praticamente adulto. O cigarro na mão esquerda, coisa de hábito, é já o terceiro praticamente consecutivo. Expiro, de novo, profundamente. Porém, agora resultado do peso sentido na alma. É impossível evitarmo-nos, é impossível desviarmo-nos das nossas congeminações e das nossas respostas provisórias. Se não padecermos de doença mental incapacitante que nos aliene e esquarteje a personalidade, é impossível fugirmos de nós próprios, a tentativa de escape é inglória e vã tarefa. Decidi aceitar os meus próprios juízos. É evidente que seria… a minha questão abarcava várias respostas, todas elas plausíveis, tanto as prazenteiras como as aterrorizadoras.

Removi com a maior das calmas os headphones. Nem sei se o i-pod ficou a tocar para as paredes, não me recordo de ter interrompido a sua mecânica pré-determinada. Tanto faz. Não tinha mais por onde contornar a dúvida suscitada. Limitei-me a desembaraçar-me da música que trauteava nos meus ouvidos por um único motivo: queria ouvir o mundo; ou pelo menos um mundo mais abrangente, aquele que agora me rodeava e do qual me podia acercar, com maior ou menor gradação, com a participação integral e sobreposta dos meus sentidos. Sentia-me, nesta medida, mais próximo da realidade, seja lá o que signifique o conceito de real – de garantido tenho apenas o facto de que este é entendido de forma mais ou menos subjectiva por cada um de nós, deformado pelas nossas lentes de visão que destacam percepções distorcidas pelo nosso esquema mental; todavia é o mais próximo que temos da representação comum dos acontecimentos encadeados e sempre em catadupa que formam o agregado das consciências e das práticas humanas. Via-me assim mais humano, mais vulnerável, todavia na melhor das condições para tentar perceber, mais do que aventar resposta, o que havia questionado. A angústia é matéria integrante da condição humana, conhecemos-lhe o sabor desde a mais tenra idade, eventualmente ainda antes de termos consciência de nós próprios, dos princípios constituintes que enformarão e atribuirão sentido à nossa identidade pessoal. Outro cigarro começou a queimar por imposição de uma chama alimentada a butano que encostara a uma das suas duas extremidades. Os meus pulmões contestavam pelos maus-tratos infligidos, facto que decidi por ignorar já que a minha mente se queria a trabalhar exclusivamente nos porquês de um porquê que suscitara e que, no preciso momento, experienciava como o mais demolidor dos mecanismos de aniquilação destrutiva.

Ia apalpando, em modos de um procedimento fugaz e prenhe de opressora incerteza, terreno do que não estava certo de querer percorrer mas do qual estava certo não poder evitar. A adrenalina pingava num compasso mais apertado enquanto o músculo cardíaco bombeava a seiva vital a um ritmo condizente com um estado de taquicardia. Contava cada sístole, cada diástole, num ritmo de quem está atrasado para o seu próprio funeral quando todos os outros, os vivos, já jazem a carpir a partida sem regresso negociável, na garganta como se o próprio órgão cardíaco exigisse por sair através da cavidade bocal. As mãos respondiam ao estímulo psicossomático movendo-se livres da minha vontade num treme-treme de varas verdes assoladas pelo sopro de tempestade tropical. Com dificuldade lá consegui limpar com o braço direito o suor que escorria afoito de uma testa gelada. Era premente recuperar o controlo absoluto do meu corpo, porém para isso era inevitável conseguir acalmar-me. Para iludir o sistema nervoso ao rubro e em alerta vermelho considerei racionalizar aquela resposta promovida pela ansiedade que sitiara a minha existência; quebrar o círculo vicioso da sensação de pânico teria de ser obrigatoriamente o primeiro dos passos a executar sendo que não podia falhar, em circunstância alguma, o que condenaria ao fracasso todo o processo subsequente, na sua realização. Se bem que não sou técnico de saúde, particularmente de saúde mental, e nem aspiro em sê-lo, domino medianamente algumas estratégias úteis para prosseguir com razoável êxito a empreitada de iludir o cérebro do seu sentimento de impotência e de falência face à circunstância que o intimidara por demais. O amor que sinto por ti vergou-me até ao limite mais baixo da minha existência. Contudo, foi igualmente o sentimento de charneira para dominar e retomar na íntegra a lucidez que como areia se esvazia das mãos que a torneiam e cingem: a minha identidade estava agora a salvo – alguma vez estivera efectivamente em causa? – e eu voltava a reinar sobranceiro sobre o meu castelo. Blindagem erguida, é hora de mergulhar na dúvida e aplicar-lhe os critérios da crítica racional sem olvidar que as emoções sobrevivem por razão que lhes é inerentemente própria. O ritmo cardíaco desbragado havia-se moderado, se bem que pulsasse ainda forte nas têmporas, e a saliva regressava à boca árida.

Era natural que… bom, não seria bem natural o termo que buscava, que visava empregar. Tinha acabado de me recompor pelo que a obviedade da minha fragilidade de resposta não espantasse. Era plausível, sim, plausível soa bem melhor e é um conceito mais moldável ao exercício racional, que o pesadelo imaginado se concretizasse. Afinal que sou eu mais que os outros? Sorri, sabendo muitíssimo bem a resposta. Finalmente um sorriso conseguira efectivar-se, torneando toda a amálgama entrópica por que passara nos imediatos minutos que o antecederam. Reganhara a totalidade da minha singular individualidade.

Volte face momentâneo, decidi-me por um armistício. Tanto comigo como… basicamente comigo, não interessa estar agora a complicar. Persuadido de que devia umas horas ao sono retornei àquela cama desproporcional, gigantesca quando para meu uso individual. Barrei o melhor que pude a luz do sol: estores cerrados, cortinas corridas uma de encontro à outra. Sabia que a minha decisão implicava em não comparecer ao trabalho naquela manhã. Todavia, em nada me sentia incomodado, o meu trabalho depende mais do objectivo a cumprir do que dos meios que unidos concorrem para concretizar o tal objectivo; afinal, os meios são mais flexíveis, facilmente manipuláveis por quem já não é um mero aprendiz na arte. A componente laboral não perturbava a minha consciência, sabendo o que acabei de explanar, pelo que acudi ao chamamento do físico quebrado. Voltei a deitar-me só com o lençol, e parcialmente, a cobrir-me. Os olhos exaustos acolheram de bom grado a escuridão encontrada assim que deixei cair as pálpebras. Retirei da tomada o maior número de neurónios que pude, mais tarde iria carecer do exercício de cada um deles, sem direito a exclusões mesmo que justificadas. O assunto não está encerrado, longe disso, só agora fendi terreno a trejeito para os primeiros trajectos face a uma questão que me coloca em combate comigo próprio; para mais tarde que agora não. Lá chegarei, devidamente equipado e pronto, com baioneta erguida e estojo de primeiros-socorros a pender do cinto; porém, põe-te prestes: a circunstância não tardará esfaimada por sangue – o teu.




Porquê a minha teimosa persistência em escrever quando me sei bem aquém do meu melhor? Que justificação para este fenómeno? Resposta inicial e provisória, não consigo deixar de escrever, como se fosse uma espécie de comportamento compulsivo. Todavia, poderia fazê-lo num registo mais privado, sem me expor, sem nos expor, num espaço de fácil acesso embora o saiba visitado com uma frequência cuja expressão é praticamente abaixo do nada significativa. Também sei, continuo convicto disso com um nível de certeza confortavelmente elevado, que desconheces por completo o endereço deste blogue; desconheces-lhe, inclusivamente, a existência. Em todo o caso exponho-me, por mais mínima que seja essa exposição. Pior, exponho-me ciente que ainda estou excessivamente debilitado pelo ‘cansaço cerebral’ que me acometeu há mais de um mês e do qual não recuperei ainda em pleno, falta ainda bastante e muito ‘exercício neuronal’. Não importa. Talvez seja apelativa, e até confortável, uma resposta nestes termos: pouco importa o estado em que nos encontramos, o que realmente importa é o esforço que envidamos para darmos o nosso melhor – independentemente das circunstâncias de um momento preciso. Só assim crescemos como pessoas, só assim cumprimos as parcelas do todo que é o nosso projecto de vida, estejamos a ultrapassar o mais intransponível dos obstáculos ou estejamos no topo da montanha a observar e a apreciar os ganhos que cremos fruto do nosso mérito. Afinal miúda, talvez um dia te venha a falar deste blogue, a apresentar-to. Só por ora, fico por aqui.

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