sexta-feira, 21 de setembro de 2012

ausências evidentes, take III

Retomei, finalmente, o trabalho em pleno e a todo o vapor. Não posso asserir que tal seja suficiente, porém é o melhor que posso – pelo menos por agora, continuo a perceber que certas debilidades carecem ainda de tempo a fim de cicatrizarem convenientemente. O facto de cá não estares quando desperto já não é um exagero tão penoso e quase que incapacitante como há dias atrás. Não me habituo, contudo, à enormidade da cama que encaro como absolutamente desproporcional face às minhas necessidades do aqui e agora. Sei porém que se trata de facto transitório, que em breve voltará a cumprir os seus desígnios albergando duas e não somente uma pessoa.

Sentado à beira do colchão respiro algo ofegante, com uma mão na testa a evitar que a cabeça pendesse mais para baixo. Os pesadelos, os sonhos maus do inconsciente indisciplinado, assim te referes a eles, têm sido uma constante desde há meses – três contabilizo-os com certeza absoluta, desconfiando porém que o desfile vai bem mais longo. Não todos os dias, ou todas as noites. Indisciplinado o inconsciente, vejo-me compelido a corroborar as tuas palavras. Não seguem qualquer lógica que me veja habilitado a descortinar. Surgem aparentemente espontâneos ignorando por completo a dinâmica dos dias em que estás ou aqueles em que estás mas ausente. O que complexifica mais ainda a sua percepção, abortando qualquer capacidade explicativa por onde pudesse, pelo menos ir tentando, enveredar. Por mais que pense nisso não encontro sentido, escasseia qualquer tipo de tendência que permita inferir um qualquer padrão, perco-me em divagações e considerandos que só me enleiam mais profundo na sua teia tecida pelo incaracterístico do entrópico. Basta de pensar em pesadelos, remeta-se para segundo plano as aventuras de um inconsciente indisciplinado. O tempo não cessa de correr. São agora nove e doze da manhã, afirma o despertador pelos seus dígitos de cor verde. Perdi cerca de dez minutos numa tarefa estéril exceptuando unicamente o facto de agora sentir a respiração regularizada. Pelas dez quero estar a trabalhar, envolto em análise de dados estatísticos, diligência tão fácil quanto enfadonha; para além de que exige bastantes horas, de exercício a dar para o mecânico, e o tempo é-me cada vez mais escasso e precioso. Revolvo com o olhar o teu canto vazio na cama, tão sisudo quanto a tromba de um elefante. Agarro numa camisa, invariavelmente daquelas com botões no colarinho, retiro de uma gaveta uns boxers com bonecada imberbe face à idade que tenho, e arrasto umas calças de ganga surradas para a casa de banho. Dez horas. Porque raio não abrem mais cedo? 

Olho o espelho que reflecte o rosto de um tipo com cara a acusar cansaço mesmo após seis horas de – merecido – repouso. Reflecte igualmente, para meu profundo desagrado, a queda de cabelo que se acentuou, com particular ênfase nos últimos seis meses. Os pêlos de uma barba mal semeada encobrem parte da pele da face, porquanto me recuso a cortá-la rasa até que um projecto, que não é um qualquer ou apenas mais um, esteja definitivamente concluído. Há quanto tempo não observo o meu rosto sem esta pelugem a deformar a imagem que retorna do espelho? Meses. Para cima de um ano, estou certo. É evidente, mantenho-a aparada, por regra, à medida que se costuma dizer de três dias e acertada já que abomino vê-la desalinhada, com pêlos desgrenhados que conspurcam a ideia de alguma simetria desejada. É nisso em que agora me concentro, com a gillette na mão. Contudo a tarefa não é fácil. Há dias em que me apetece mandar às urtigas a o repto em termos de aposta que concordei comigo próprio; mas não, hei-de ser eu o mais teimoso. A merda da lâmina, três para ser exacto, arrepela-me o pescoço mesmo junto à maçã de Adão. Não escorre sangue, ao menos não me cortei. Se empastasse certas zonas com a mousse de barbear, que aliás custa os olhos da cara mas outra não pode ser que a pele, coitadinha, põe-se desde logo a bradar queixumes que materializa em irritações alérgicas, seria provável que a lâmina deslizasse bem melhor. Porém, não pode ser. Perdia facilmente a noção de fronteira, o até onde pretendo desbastar. Um fio de vermelho. Porra, desta é que foi. Senti a lâmina a cortar por onde não devia. Passo água fria no pescoço se bem que o espelho informe que o meu esforço esteja a ser inútil. Papel higiénico. É prático e resulta prontamente. Se dizem que há coisas de mulher esta, a dos papelitos de papel higiénico colados nos pontos lacerados, é definitivamente coisa de homem; também merecemos, caramba. O branco assume rapidamente o tom avermelhado característico de sangue. Olho o espelho, outra vez. Recordo o meu pai das minhas memórias de infância: também ele espalhava destes papelinhos consoante os cortes que a então lâmina de platina lhe infligia no rosto. Reconheço na imagem reflectida alguns traços fisionómicos demasiado semelhantes, não fosse ele meu pai. Quantos anos teria ele nessa altura? Durante a infância não nos preocupamos com isso, acreditamos que nunca envelheceremos; acreditamos igualmente que aqueles que mais estimamos jamais hão-de partir, como se aos nossos olhos fossem eternos. Enquanto crescemos do que mais custa observar é a morte desse mito consubstanciada nos traços de desgaste próprios de idades mais avançadas que os progenitores, incapazes de os travar, desenvolvem paulatinamente ainda que de modo perene e cada vez mais vincado. Creio que grande parte dessa angústia advém do facto da percepção que a morte os envolve e que para ela irremediavelmente caminham, o que nos traz à consciência a ideia da nossa própria finitude, que também a nossa singularidade terminará inopinadamente num qualquer dia que, para mitigar a dor psicológica, projectamos sempre no futuro e preferencialmente num futuro remoto; todavia, lá está ela bem incrustada, a ideia de morte. Escapo a estas cogitações mórbidas porque agora és tu quem, de rompante, me invade a mente. Gozas comigo – devo dizer brincas, há que ser sério em escolher os termos acertados – cada vez que me olhas e eu a distribuir minúsculos bocados de papel aqui e ali onde o vermelho sangue escorre como água numa tímida nascente que brota da rocha fendida. Ficas pasmada, talvez até um pouco estarrecida, quando me observas nesta prática. Estacas de ombro encostado à ombreira da porta, tão imóvel que pareces continuação lógica da mesma. És capaz de ficar assim minutos em silêncio, sem pronunciar o menor ruído. E eu, pelo canto do olho, vejo-te encantado e todo o meu ser desaba nos oceanos de carinho e ternura que te tenho. Às tantas lá te decides que és um ser ciente, na tua unicidade, e aproximas-te com vagar do meu corpo, abraçando-o de trás para a frente, poisas o teu queixo no meu ombro, depositas um, dois ou três beijos suaves no meu pescoço e eu, em deleite e por ti arrebatado, fecho os olhos para melhor sentir o teu morno e delicado beijar, as mãos que se encaixam diante do meu tórax, puxando-me de encontro a ti, o peso que não pesa do teu queixo em mim apoiado, a respiração que consigo escutar, o cheiro que emanas e que conta ser amor; também eu te amo, muito, correspondo-te o melhor que sei e posso porque quero, porque o meu sentir me exorta a diligenciar-te palavras e gestos, mais gestos, próprios só a quem ama e ama de verdade. Contudo, hoje não te é possível rires-te de mim. Aliás, já faz muito. Demasiado. Estás tão perto e tão longe, sei que moras aqui e no entanto não sei onde te encontrar – por muito que te veja em todo o lado. Esboço um sorriso, que me é transmitido de imediato. Os olhos brilham, proclamam a alegria de viver que ingressa novamente na minha essência. Volto a banhar abundantemente o rosto com água fria. Já não há sangue. Estancou.

Um duche rápido, enxaguar de forma preste mas eficaz o corpo, secar o cabelo com o secador suficientemente distante para que o bafo ardente cuspido da sua boca chegue ao couro cabeludo o mais tépido possível, frio de preferência, desodorizante nas axilas que este calor não perdoa, vestir a roupa previamente deslocada para a casa de banho; camisa invariavelmente de fraldas para fora. Tudo isto realizado mecanicamente, embora contigo a monopolizar os pensamentos e devaneios que duraram neste entretanto. Sei que há dias fiquei de me atribuir resposta a uma interrogação levantada. Não qualquer uma. Daquelas interrogações existenciais e patetas que tantas vezes surgem do aparentemente nada. Patetas, sem dúvida. Mas nem por isso menos passíveis de respostas provisórias entre as quais residem aquelas que mais repudio e temo exactamente pela simples circunstância de poderem vir a encontrar algo – ou alguém – que as corrobore. Ainda não é para hoje, não. Fica para amanhã, sendo que amanhã pode ser um qualquer dia no futuro. Saio. Tranco a porta. Lembro-me, todavia, ter-me esquecido de chegar a escova aos dentes. Retorno a casa num frémito. Escovo o serrote com pouca água e um dentífrico de farmácia com supostas propriedades branqueadoras. Nunca lhe vi resultados, mas insisto no seu uso reiterado mais teimoso que uma parede de maciço cimento. Esguelho os olhos ao espelho, o suficiente para reparar que tenho comigo os óculos que corrigem a visão que à distância se turva, que na camisa pendem os de sol e que, finalmente, não há sinais de pasta no canto dos lábios. Incerto se me havia borrifado com perfume acudo a um frasco verde que inadvertidamente fora deixado numa posição vulnerável correndo sério risco de se estilhaçar de encontro aos azulejos, ou pedra ou seja o que for, que cobrem o patamar do chão. É o perfume que me acompanha há mais anos e que vai, sem desgaste alavancado pelo tempo, encabeçando os meus predilectos, nem sempre correspondido na mesma medida por companheiras de jornada – também tu, neste particular, não fazes excepção; não há mal nisso. Agarro a chave do carro, começo a ficar atrasado, o que não me fica bem visto face ao anterior considerando irónico e sarcástico, talvez até petulante, de quem asseverou mais do que questionou porque raio não abrem mais cedo. Regresso, por motivo desta interrogação, à impertinente incerteza do que estaria a ser cozinhado no Porto. Falta de confiança? Sem duvidar. Só que em mim, não nela. Aqui o demérito é meu, consagrado pela auto-estima deficitária que tão claramente me caracteriza. Mas alto, estou a ir longe demais e não pretendo enunciados sobre os quais mais tarde me seja difícil retractar. Há que ser pragmático, porém igualmente prudente. Não é este o timing para iniciar em deambulações hipotéticas. O foco está no trabalho. Sê exigente contigo e concentra-te no primordial, todo o demais é acessório mesmo que das tripas fizesses coração. O elevador tarda em chegar, teimoso como a tua ausência o é; pelo menos assim a sinto – e desespero na obsessão de te voltar a ter nos braços.

À chegada sou recebido com a simpatia do costume. O ponteiro já ultrapassou as dez horas. As pilhas de material aguardam por mim numa secretária própria para o efeito, colocadas pelas mãos diligentes e simpáticas daqueles que provisoriamente me acolhem. Abri o netbook e aprontei-me para imergir nas tarefas que estão à minha exclusa responsabilidade. Antes, porém, fitei o tecto da sala com a imagem em mente dos risíveis pedaços de papel higiénico colados ao rosto e do teu abraço de possessiva ternura. Recordo porque gosto tanto de ti, de forma imensurável e esmagadora – se bem que no melhor dos sentidos. Arreganhei o sorriso. Até já, miúda.

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