Quinta-feira. Tiveste que voltar
hoje ao Porto. Afinal, é nessa cidade que desenvolves a maior parcela do teu
trabalho. Partiste cedo, ainda de madrugada, pelo que a tua consciência optou
por ditar que não me despertarias. Tenho pena que assim decidisses, preferia
ter visto o meu sono interrompido, mas de qualquer forma não censuro o teu
juízo. Fizeste o que entendeste melhor, o que o teu tino considerou como
decisão acertada, e no teu lugar provavelmente teria agido do mesmo modo. Pelas
oito e pouco da manhã, sem ainda ter consciência concreta da hora, sentia-te
presente, o que era falso. O teu cheiro ainda emanava forte dos lençóis, do
travesseiro, único na cama porque eu há muitos anos que o dispenso. Era este o
engodo que me levava a acreditar que a tua ausência seria coisa nas mãos do por
vir. Logo percebi o erro a que se tinha entregue a minha percepção. O teu
lugar, opostamente ao que acontecia no meu, estava frio, demonstrando por a mais b que havias deixado o conforto da cama fazia muito.
Disseste-me na véspera que
pretendias abalar antes das seis, pelo que assumo que te terás erguido poucos
minutos após a quinta badalada da madrugada. Já conhecia a sensação em que me
via envolto, nada tinha de inédito, não me era novidade. Como a cama é enorme.
Como é enorme sem ti. Perdia, inclusivamente, grande parte do seu sentido,
transmutando-se num monstro deslocado face ao nosso universo. Talvez por isso
tenha saído dela o mais rápido que consegui, talvez por isso tenha despertado
de uma forma tão imediata e brusca. Se não estava disposto a perder a réstia do
teu cheiro, menor era a disposição de partilhar aquela cama com o vazio gélido
e impessoal que tão mal te substituía. Entrepunha-se entre o nosso viver cerca
de trezentos quilómetros de distância e uma mão cheia de milhares de metros em
altura. A princípio, estou certo que na sexta-feira passada, dizias-me que
levavas o carro. Domingo, contudo, constatei que marcavas uma passagem aérea,
ida e volta, num site de viagens
alojado na Web. Fiquei surpreso, não
é teu hábito usares esse transporte que rasga os céus nos teus périplos entre
Lisboa e Porto – assim sei porque mo contaste tu, somos ainda demasiado jovens
quando falados no plural; e acredito em ti, sim, acredito, ternura. Pelas minhas
contas deves estar a sobrevoar a área metropolitana do Porto. Sim, recordo bem
que estava prevista a saída da Portela pelas sete e quinze. São tão somente
cerca de vinte minutos de voo que separam Lisboa do Porto. A estes há que somar
aqueles que decorrem enquanto a máquina de asas aguarda pela sua vez,
fazendo-se por fim à pista e daí arremessar-se para as nuvens; e aqueloutros,
que antecedem a aproximação ao aeroporto de destino, a aterrizagem em si e o
parqueamento do gigante pássaro metálico. Tudo isto em uma hora, menos de uma
hora. Era esse o tempo que nos separava, longe, contudo, da real distância
física a que te sentia. Podias ter-me acordado, digo, despenteado, com ar
labrego e voz de sono, alto para o espelho que olhei de esguelha antes de buscar
a escova e a pasta de dentes. Repeti, dizendo-o outra vez, agora notoriamente
irritado por a máquina da escova me transmitir com um zumbido ténue que precisa
da bateria recarregada. Paciência, vai assim mesmo, molhando a extremidade da
escova na água que escorria da misturadora do lavatório. Ou não, ou não.
Afirmei em pensamento a fim de evitar que cuspisse o espelho com saliva e
dentífrico, facto inevitável se me decidisse por me exprimir em palavras
faladas. Limpar o espelho seria enfadonho e o pior, sei-o bem, é que não o
limparia pela preguiça que a tua ausência tantas vezes motiva em mim. Se
soubesses quantas vezes limpo, arrumo, aprumo de forma forçada e em tempo
limite… até tu perderias essa tua calma sobranceira que tanto admiro. Devia
ter-me acordado, bolas, rosnei entre dentes enquanto manipulava, em simultâneo,
a misturadora do duche do polibã. Nada. A água sempre fria. Desagradado,
arrastei-me até à cozinha, nem me acordou e desligou o esquentador, pontuando o
final do pensamento com uma expressão vernácula. Abri a portinhola, fingindo
ser continuação do armário que guardava toda a espécie de loiças e mais algumas
que eu ignorava, e protestei ao encontrar o manípulo do gás cortado.
De retorno à casa de banho
baixando a totalidade do manípulo, cortando o fluxo de água que deixara a
correr em catadupa. De novo para a cozinha e com o esquentador defronte
permiti-lhe que se alimentasse de gás, rodando a torneira para a posição on. Com força desmedida puxei, incisivo,
a alavanca até ao seu limite, para cima e para a minha esquerda. Expirei,
danado sabe-se lá com o quê, brusca e ruidosamente, com os lábios semiabertos a
fim de tornar este expediente mais célere e, ainda que estivesse só, mais
dramático. O vapor saído da torneira indicava que estava tudo pronto. Voltei a
encarar o espelho. O negro papudo por debaixo dos olhos era inconciliável e
informava-me que andava a exagerar quer do físico como da mente, sendo,
contudo, absolutamente ignorado por mim, sentimento que reiterei com um
encolher de ombros rápido e como que indiferente, abandonando depois e sem
demora a imagem reflectida no espelho. Porque raio a água estava tão quente? Tu
havias de gostar. Gaita, não me podias ter acordado, sem abrir a boca que a
água entretanto começara a jorrar pela minha cabeça, corpo abaixo, até se
escoar pelo ralo. Encostei ambas as mãos aos azulejos húmidos e
desconfortáveis, suportei o meu peso com os músculos dos braços.Com a cabeça a
pender para baixo e com a água, que caía de cima, a massajar a nuca partilhei em
boa voz com qualquer fantasma que se pudesse encontrar na casa de banho: não
podias ter-me chamado? Pouco importava. Estava feito e para além de qualquer
reparo. De nada valia estar a especular sobre cenários que nunca poderiam ter
força para se impor ao determinismo do que já foi. Ainda com a cabeça pendente,
esforçando-me por adquirir as minhas faculdades que nem o choque térmico tinha sucedido
em arrancar à torpes, vacilava-a, com o vigor possível, em direcções opostas,
num significado que não, que não percebia, que não compreendera a tua atitude;
que, no íntimo, era incapaz de aceitar. Haveria de acordar em conveniência,
haveria de ficar embaraçado com a mescla de sentimentos de raiva e fúria e mais
ainda de abandono e de despropositado ciúme que permitira ultrapassarem os
mínimos razoáveis do meu discernimento. Só não o sabia ainda. Para mim, o dia
mal principiara e, num primeiro entendimento, não propriamente da melhor
maneira. Partiras, era isso o que de facto me afectava. Não suportava a ideia
de uma quinzena de ausências, toscamente interrompidas por telefonemas quase
sempre curtos e pelos contactos online
via webcam onde o à vontade era
escasso por motivo de constrangimentos que eu próprio desconheço; nunca fui
bom, nem nunca fui adepto, das interacções no universo do espaço virtual com a
pessoa que, comigo, partilhava da mesma cama. O computador, nada mais do que
uma máquina, era um intruso desajeitado e indesejado no nosso leito. Céus, como
odeio falar-te à distância.
Rodava no carro rumo a Cascais.
Não te ligara nem tu a mim. De qualquer forma, embora mais do que certo que não
telefonarias, imaginava-te já numa sala qualquer do departamento da faculdade,
fazia figura de tolo com o auricular sem fios enfiado na orelha direita – nunca
o uso à esquerda quando conduzo, evitando a panóplia de ruídos pelos quais seria
assaltado no caso de, por algum motivo, como o de acender cigarros que aos teus
olhos é um acto criminoso que auto-inflijo, acabar por descer o vidro que
complementa a janela – agarrado e fazendo apelo à piedosa ideia do talvez.
Estacionei o carro e com o motor ainda a consumir combustível olhei o mar. Pela
primeira vez no dia experimentava uma sensação de profunda calma, à qual me
entreguei sem obséquios, recostando-me no estofo do automóvel após ter rodado a
chave para a posição de desligado. Assim permaneci imóvel, com o auricular a
começar a tornar-se incómodo, durante prolongados minutos. Os meus únicos
gestos devem ter-se limitado àqueles estritamente necessários para retirar os
óculos escuros do rosto a fim de contemplar, ou assim o pensava, com maior grau
de pureza o espectáculo que assomara aos meus olhos e que penetrara cómoda e
confortavelmente em todo o meu ser. Por momentos, estava em paz. Com o meu
mundo, com o teu, com o nosso, com todo o demais que nos rodeia.
Quebrado o feitiço do mar, sem o
qual juro vezes sem conta que não conseguiria viver, recoloquei os óculos
escuros – um dos cinco pares que guardo segundo uma ordem precisa no topo de
uma estante de metro e meio que temos encostada numa parede do nosso quarto,
por cima das credenciais que vou coleccionando de congressos e afins; onde
terás tu as tuas? – percebo agora que só me recordo de as ver a pender no teu
peito, quase sempre enlaçadas no pescoço, pontualmente a trilharem-te a roupa à
força de uma mola mais ou menos dentada, conforme o critério das respectivas e
distintas comissões organizadoras, sorrindo, há tanto que desconhecemos daquilo
que chamamos nós, mais preciso, cogito, de cada uma das singularidades que em
unidade constituem, estruturam e dão razão de ser a essa tal coisa, a esse
fenómeno, o nós. Observo o retrovisor que me espelha a informação de estarem já
os meus olhos protegidos não da claridade parida por um sol veraneante radioso
mas sim da intrusão dos olhos dos outros que lhes possibilitam a percepção
visual, e não só, do espaço em que se encontram envoltos. Sou de facto egoísta
e hedónico, tenho como prazer ler os eventuais significados que o olhar dos
outros transmitem, contudo reservo-me a barrar-lhes possibilidade semelhante. A
mão esquerda faz a porta do automóvel bater com força suficiente para se
encerrar convenientemente, os dedos da mão direita, para além de segurarem
firme a mala com o netbook, o
gravador digital e uma moleskine de
bolso a dois terços preenchida com a minha letra hieroglífica, apertaram o
botão apenso à chave trancando o acesso ao veículo por desconhecidos, ou assim
se espera que seja. Há uma entrevista, mais uma, a conduzir. Volto a olhar em
redor como faria um predador no seu habitat de caça. Desço os degraus
conducentes ao paredão da praia, o olhar atento ao cinzento do seu cimento, já
mais do que uma vez, porque distraído, me ia estatelando por elas.
Inconscientemente, levo uma mão a um joelho, ainda dorido do derivado da pancada
seca num rígido degrau. Defronte o areal e depois o mar, que se espraia
incansavelmente na areia. Rodo o corpo para a direita e prossigo pelo paredão.
Quinze dias sem ti. Partiras sem te importares em me deixar nos lábios com o
sabor do beijo teu. Uma eternidade, para quem desdenha da espera e que com ela
convive desagradavelmente e sem armistício. A entrevista. Concentra-te. Já
basta teres que descodificar no discurso o que foi dito e não dito, os
silêncios e as palavras verbalizadas com vincada emoção, isto e aquilo, o eu
sei lá que mais. Não entres na empreitada de tentar analisar os códigos de
discursos que pertencem somente, e solenemente, à tua esfera pessoal, não é
trajecto que queiras percorrer, pelo que me esforço em alinhar o raciocínio. Eu
teria feito o mesmo. Exactamente, sem tirar nem pôr. Seguiria caminho sem
perturbar o teu sono. Porque voltava a pensar no mesmo? Por ser verdade, e
certamente sê-lo-ia, ou para justificar, acalentar, mitigar a tua
intranquilidade de espírito? Voto na última. Giro o relógio para confirmar que é
hora certa. É. Ainda antes de avançar, coloco ambos os telefones em modo de
silêncio, confrontando-me igualmente com a constatação óbvia de que não havias
tentado contactar-me. Retiro os óculos, a etiqueta, quer do senso comum como
aquela derivada do métier, obriga a
que olhe o meu interlocutor em circunstâncias em que a igualdade é tida como
pretensamente adquirida – o que na realidade não consubstancia qualquer verdade
de facto, mas a ilusão é o que basta, pelo menos a mim nas minhas intenções
mais imediatas do momento. Penduro-os, por uma haste, no pólo. A poucos passos
de mim a entrada do espaço em que me relacionaria face a face com o dito
interlocutor. Peço uma água com gás fresca, hoje com copo, sim: a tal etiqueta,
pois bem. Deixei-te à porta, não podias entrar, são mundos diferentes, como
sabes.
Sensivelmente hora e meia depois
e caminhava as mesmíssimas escadas, agora no sentido inverso. Obtivera o que
pretendia. Aqui não há bem nem mal, há simplesmente o factual e é com isso que
trabalho, ponto final. O sol feria-me os olhos, os óculos pendiam na boca,
sustidos pelo terminal de uma haste entre dentes. Feria-me também a crua
constatação de que no entretanto não tinhas ligado nem enviado uma mensagem de
texto, só uma havendo, do banco, a aborrecer-me com umas tretas quaisquer que
promoviam qualquer coisa a que não prestei atenção a não ser, sem propósito
manifesto, que remetia para um upgrade
do cartão de crédito. O motor vibrava e a marcha-atrás engatada. Qual o meu
espanto? Absolutamente nenhum. Agira do mesmo modo, permanecendo incontactável
e não existente no teu mundo, nada fizera no sentido de escutar a tua voz ou,
pelo menos, de te ler num brevíssimo texto característico do serviço de
mensagens curtas. As quatro rodas rolavam no alcatrão da marginal, já conhecido
por mim de cor, com destino não totalmente definido. Talvez para o Guincho.
Não, antes a Capitania, depois a cidadela, só então o Guincho. As horas faziam
a manhã avançar, numa marcha plácida proporcionalmente inversa à
intranquilidade em que imergira, esgotado de contra ela batalhar: encontrava-me
engolfado e nada agora havia a fazer que obstasse a esse estado absorto e
embrenhado, conheço-me bem. Limitei-me a abusar do pedal do acelerador e a
aumentar significativamente o output
das colunas do rádio, como procedo, com poucas excepções, em situações desta
natureza. Concentrado na condução e a pensar no que fazer nos locais de
destino, tentava com a convicção possível arredar-te da mente. Precisava de ti.
Precisava de ti que não estivesses presente, que apartasses. Os graves da
música embatiam como ondas do mar no meu peito, prosseguia com a tua ausência.
Ter-me-ás beijado antes de seguires para ir voar, estando eu no mundo dos
sonhos que o sono desperta? Era um minguo consolo a que me apegara antes de te
deixar abalar da minha consciência.
Regressei a casa após o ocaso,
por opção deliberada. Jantara algures em Carnide, a ideia de tomar a refeição
em casa sem ti pareceu-me descabida e sem propósito, sem proferir uma palavra
que fosse excepto as essenciais para solicitar uma mesa, um prato, uma bebida,
um café, a conta e para agradecer um serviço que, bem vistas as coisas,
adquirira, pagando-o. Atirei os óculos, arremessados com desdém, para cima da
mesa da sala de estar. Agradar-te-ia imenso, este meu gesto. Contudo, o que
importava? Não estavas lá. Assapei-me no sofá ligando, de imediato e
instintivamente, o televisor, saquei o netbook
da sua minúscula pasta, demasiado preguiçoso para agora me levantar e ligar o
meu portátil a sério, como o denomino por oposição ao lerdo netbook, apenas eficaz, e bastante, para
trabalho de campo, com o intuito de verificar a caixa do correio electrónico,
da outra, do correio de papel, nem me ocorrera sequer abri-la, e logo que
(in)satisfeito baixei-lhe a tampa, pousando-o atabalhoadamente na mesa que
suporta um pequeno candeeiro e uma foto nossa, acompanhada por uma tartaruga de
pedra, um mocho de cristal, mais uma jarra de tipo solitário despida de
qualquer ornamento – tudo composto pela tua mão. Durmo aqui hoje,
confidenciei-me. E porque não o fazer? Recordava a imensa cama que para meu uso
exclusivo me parecia aberrante, desprezando-a com um movimento que os meus
ombros, em concordância, acompanharam. Fitei a televisão, sem a ver. Peguei no
telemóvel mas desisti de levar adiante o projecto de ligar-te. Deixei-o pender
até à almofada e, então, desprendi-o. Deitei-me atravessado a todo o
comprimento do sofá, encolhendo as pernas. As pálpebras cederam e tu voltavas,
de novo forte e cheia de ímpeto, a mim. Abracei-te no meu pensamento. Era-me
confortável voltares a ser o centro das minhas atenções. Suspirei. Sinto a tua
falta, disse-o bem baixinho. Sei que o sabias. Sei que me escutarias. Voltei a
encher o peito de ar e a expirá-lo de uma só assentada. Ausente, vives em mim.
Não tinha sono nem estava particularmente cansado. Padecia apenas da tua
presença ausente.
Mantinha os olhos fechados quando
a síntese do dia se realizava, virtude do trabalho dos meus neurónios aos quais
não havia encomendado a tarefa, discorrendo como imagens projectadas em
catadupa numa tela. Surgiu espontânea provavelmente com o propósito ou o
intuito de pacificar as hostilidades que havia despoletado em mim e contra mim;
desempenhava os dois papéis em simultâneo, papéis em regra assumidos por
actores distintos e concorrentes que pouca simpatia nutrem um pelo outro e que,
ao fim e ao cabo, acabam por se considerar inimigos, vociferantemente engajados
em práticas belicosas subjacentes aos seus, amiúde, ridículos antagonismos. Ao
invés de me aborrecer gozei comigo, questionando-se no meio de silenciosas
gargalhadas labregas se estaria a ficar esquizofrénico ou bipolar, sabendo que
na realidade nada disso acontecia e que tal se devia apenas ao labor do meu
cérebro empenhado em me defender até de mim próprio. Sentei-me, puxando os
cabelos para trás, com os dedos da mão formatados como uma, ainda que tosca,
escova de pentear. Puxei de um cigarro que prendi com os lábios. Com o isqueiro
amarelo-torrado na mão, sempre tive um fraco pelos isqueiros com tonalidades
pindéricas e que as demais pessoas hesitavam em escolher para si, estaquei os
movimentos impedindo-me, dessa forma, de acender aquele cilindro que dizem que
mata, provoca o cancro, avilta o esperma, prejudica os demais e sei lá o quê.
Contudo, a minha motivação nada tinha que ver com esses ditames assumidos como
axiomas dignos de venerável aceitação sem apelo nem recurso. A razão era única
e sei-a bem. Repugna-me o que chamo de cheiro a tabaco morto e uma vez que me
dispusera a pernoitar na sala dispensava essa sensação de náusea e nojo que
certamente se prolongaria noite adentro. Coloquei o cigarro entre dedos,
semi-dobrados, com o filtro voltado para o exterior. Silenciei o televisor sem
sequer me ter dado ao trabalho de para ele erguer o olhar. Acendi o candeeiro
da mesinha adjacente ao sofá apagando, por seu turno, a luz provinda das
lâmpadas do candeeiro de tecto. Dirigi-me para a cozinha, encerrando a porta à
minha passagem. Vi-me forçado a três tentativas até ser bem sucedido, há já
algum tempo que me prometera arranjar aqueles puxadores, mas como muitas outras
também esta promessa permanece ainda encerrada na gaveta das minhas boas
intenções. Iluminei o exaustor por cima de um fogão que aos meus olhos me
parecia merecedor de reforma, pese embora não conte ainda assim tanto tempo,
mesmo em idade de fogão. A luminosidade que aclarou a cozinha era ténue e quase
tímida, em conformidade com a minha disposição. Não fora por obra do acaso que
preterira as irritantes e agressivas luzes de tecto, tradicionalmente afectas
ao imaginário popular do que têm que ser luzes de cozinha, pela plácida
claridade proporcionada pelas duas lâmpadas incrustadas no exaustor. Obriguei a
deslizar, contrariada, uma das janelas. Por esse espaço observava com melhor
discernimento o negrume que se instalara nesta parcela do mundo e que apenas
era interrompido pelo brilho dos candeeiros de rua, coadjuvados por
interpelações luminosas espaçadas sem qualquer harmonia de outros fogos da
vizinhança e, claro está, pelo terno cintilar das estrelas ancoradas no manto
celeste. Agradou-me igualmente a suave e fresca brisa que irrompia pelo espaço,
em particular quando me tocava o rosto, provocando pontuais arrepios que se
espraiavam essencialmente pelo pescoço e pelos braços. Tornei a colocar o cigarro
na boca, após o qual repeti o movimento de puxar os cabelos para trás.
Interrogo-me porque danada razão farei eu isso, que cada vez tenho menos, menos
cabelo. A chama do isqueiro bamboleava ao sabor da brisa e fez arder o tabaco
do cigarro, cessando-se a partir desse momento e retornando o objecto a gás ao
bolso mais pequeno das minhas calças de ganga meio encardidas. O fumo expelido
pela boca vagueava incerto até se dissipar no infinito da noite, semelhante a
uma tímida imagem de nevoeiro que se esmorece languidamente sem que os nossos
sentidos consigam acompanhar devidamente esse aparentemente simples porém
complexo processo. Repeti o gesto algumas vezes. No entretanto, o meu cérebro
não se encontrava ocioso. Bem pelo contrário, despendia a maioria das suas
energias a pensar em ti. Como estavas longe. Contudo, apenas a pouco mais de
uma hora de avião; ou menos. Como estavas longe. Essa distância, letárgico
debrucei-me sobre as mais variadas hipóteses, dever-se-ia aos quilómetros que
entre nós se entrepunham ou seria resultado de uma clivagem contada noutro tipo
de medida? Larguei o couto do cigarro num pequeno cinzeiro circular de vidro,
possivelmente mais velho do que eu, surripiara-o do espólio de tralha de casa
dos meus pais, ao qual acrescentara uma ligeira quantia de água entendendo que
a brasa a fumegar no cigarro vorazmente consumido se apagasse de imediato,
evitando que mais fumo se espalhasse pela cozinha e restantes divisões do
apartamento, mitigando o nojento odor que um cigarro acabado de apagar exala.
Coloquei de imediato outro novo cigarro na boca, como se esse gesto acelerasse
a minha capacidade de pensar, concorrendo para um célere desvelar do que não
conseguia, por jeito algum, desvelar. Mera ilusão, nenhuma velocidade era
adicionada àquela que era natural das minhas sinapses. Não o acendi. Deixei-o
estar, a pender dos lábios, ainda que lhe tenha suavemente trincado o filtro
quando instintivamente me deu para cerrar os queixais. Não seriam os
quilómetros uma desculpa adequada e racionalizada para justificar o
distanciamento que vivia e experenciava com angústia? Uma metáfora, sim.
Estaríamos nós a permitir, ou até mesmo a participar activamente, que o abismo
nos cingisse? Foi o clique que precisava para ir buscar o isqueiro e acender
este outro cigarro. Conservei o fumo inalado por quanto me apeteceu suster a
respiração. Deseja eu suster o mundo, o nosso mundo, colocá-lo em pausa? Expeli
o fumo com o olhar perdido a contar estrelas e desmotivado com a plausibilidade
da minha última interrogação. Tossi, mais por me ter engasgado com a minha
própria saliva do que propriamente pelo efeito, nefasto, já o sei, do fumo que
atravessara em dois sentidos a garganta concomitante arranhada. Cotovelo
assente na pedra do parapeito e o polegar a suster, pelo apoio na sobrancelha,
a cabeça. Pois, afinal estava mais perdido do que julgara. Estava esclarecida a
minha intranquilidade, lutava por nós, e comigo, sem de nada te informar; para
quê incomodar-te com os meus pensamentos neuróticos se nem eu sabia o que eles
me pretendiam transmitir. A dúvida instalara-se ramificada. O cigarro foi de encontro
ao cinzeiro. Permaneci estático a olhar a lua lá fora, em crescente, apático e
sem reacção.
Temia pensar ainda mais sobre o assunto. Doía-me pensar. Como gostava que a nossa casa pudesse oferecer vista para o mar…
Temia pensar ainda mais sobre o assunto. Doía-me pensar. Como gostava que a nossa casa pudesse oferecer vista para o mar…
Sem comentários:
Enviar um comentário