A chuva precipita-se copiosamente sobre a cidade. Há muito que fazia falta. Não são somente os territórios aráveis, agrários e rurais que carecem da sua bênção. É essencial para a urbe, acometida por poeiras e outros detritos acumulados durante o período em que o céu não chora, lavando o seu tecido de ponta a ponta incluindo os seus interstícios (mais imundos).
Já comi, já pus a loiça na máquina e só não alimentei o cão porque não o temos. Fazia parte das nossas intenções, recordas-te? Algo protelado já que nos demorados concílios em que debatíamos que tipo de cão para, nunca chegáramos a consenso. Porém, seja-se apologista da verdade, o certo é que a pressa quanto ao amigo canino não falava assim tão alto. Temos tempo, concordávamos provisoriamente até que chegasse a concordância final de escolha. Eu cá teria preferido um gato, hipótese que de imediato descartaste. O cão, então. Largo a pastilha na máquina e sacudo das mãos, directo para o chão, o pó remanescente que a elas se colora sem ter sido convidado para permanecer. Inspiro pelo nariz, incomodado. Constipei-me, raios partam estas bruscas mudanças meteorológicas. Nem cão nem gato. Eu e a máquina de lavar loiça, cujo labor inicio mal encerro a portinhola. Rasgo uma folha de papel do rolo de cozinha e assoo o nariz, todavia sem que isso contribua para reparar o meu incómodo. Encolho os ombros, paciência – o que hei-de fazer? Safo-me, contudo, do teu discurso de censura: regressas amanhã e não irás perceber o meu gesto que deixei de executar à tua frente por ter percebido – entenda-se, após teres-me feito perceber sem margem de apelo a dúvida – que te repudia e enoja. Há cá uma diferença entre lenços de papel e o papel dos rolos de cozinha. Todavia, nem pretendo reentrar nessa argumentação que foste peremptória, talvez até imperativa, muito para além do habitual. Na minha rendição, concedo-te a atribuição simbólica que distribuímos pelos objectos: se é rolo de cozinha, então o seu papel remete para afazeres adstritos a práticas que remontam da sua adjectivação; se é papel em que no rótulo vem impressa a palavra lenços, então o seu uso referencia-se também mas não só à limpeza não da cozinha mas do sótão atafulhado de agentes bacterianos que muitas vezes o nariz, ou o seu interior, que é mais correcto, o é. Ok, quem sou eu para pretender boicotar o teu jogo de papéis? Sim, já sei que sei mais do que isso, que mais do que um dever é minha obrigação: contudo, não poderia eu por uma vez separar o trabalho da esfera pessoal, impondo-lhe uma clivagem tal que pudesse ser, por assim dizer, duas pessoas? Levo o recorte usado do rolo para a casa de banho e submeto-o às torturas do turbilhão de água evacuado pelo autoclismo. Porque perco tempo e queimo paciência com estes devaneios inúteis? Afinal a tua presença só amanhã se materializará pela casa. E não saberás, ai pois não, de nada pela minha boca que se firmará mais firme que a concha de um bivalve. Não por cobardia, antes para evitar aborrecimentos inúteis. Quer a mim, quer a ti. Regressas. Quero o confortável silêncio de um beijo unido por abraço há tanto tempo desejado. Discutir é cenário que não quero sequer imaginar para amanhã. Primeiro os mimos, só a seguir a trivialidade no nosso quotidiano.
Onde é que eu ia? No cão? Não, já sei: a chuva e a cidade. Hoje o verbo sai-me pouco fluído, de certo por défices graves no emaranhado que amiúde enleia a imaginação. Não quero saber, que se lixe. A verdade é que penso numa coisa e numa apenas. A minha mente vive já no dia de amanhã, debruçada e deleitada nos prazeres sensitivos que o do teu colo oferece em dádiva desinteressada que não exige retribuição. Entretanto o céu chora, a cidade banha-se deliciada. Chove no teu Porto? Sei que sim, embora os meus olhos não vejam.
Se me esqueci das dúvidas que assomaram à mente? É evidente que não. Sentença imediata desprovida de hesitação. Não são fortuitas. Silencio-as, apenas. Faço de miúdo e de miúdo faço de conta. Faço de conta que não existem. Por ora. São demónios que não consigo afastar sem lhes aplicar devida exorcização. Sinto-os, ainda que silenciosos, a morderem implacavelmente pedaços de alma. Pedaços bem grandes, impossíveis de ignorar. Não mata, mas mói – assevera a sapiência popular. Corroboro: como o inverso? – não há como… antes houvesse. Onde param as nossas âncoras que até hoje se mantinham inamovíveis e aguerridamente agarradas à certeza? Enferrujaram. Sim, decerto foram enferrujando. Será a corrosão que subjaz irremediável? Conheço a resposta, bem demais para a escarrapachar numa palavra. Conduz-me para outro universo, para o universo da dor emocional. Que criaturas desbragadas, os meus demónios. Feias.
Coloco as severas dúvidas em pausa. Amanhã. Para cima de um mês que os meus olhos não encontram os teus. Aquelas encenações em que, agarrados aos nossos portáteis, nos encontrávamos via espaço virtual para mim não contam. Não contam para nada; ou quase, já que alguma certeza se insinua. Pouco importa. Centro novamente a atenção no dia de amanhã, dia em que como um cão portarei de vigia à porta até que por ela adentro caminhes. Devaneio, se calhar já temos o cão – só ainda não tinha dado conta disso. Tolo, escarneço de mim com raiva a aflorar-se na voz dos meus pensamentos. Recupero imagens que ainda estão por vir, imagino-te a afagares-me o cabelo e a despenteá-lo com as tuas mãos. Regressa o cenário do cão, só me falta a língua de fora e rebolar-me pelo chão. Constrito a tolerância que ainda havia tido comigo: tolo, não; palhaço – mas alguma vez sou algum cão, assiro ferrenho com palavras das mais bem feias a dar o mote a uma eventual interrogação. Busco e rebusco nos bolsos das calças pelo maço de cigarros. O nervoso, esse, miudinho. Tiro o primeiro, partido. Arremesso-o violentamente sem preocupações com a direcção. Já a ficar esganado, sai o segundo. Torto, ainda assim intacto de ponta a ponta. Endireito-o com os dedos enquanto o encaminho para os lábios e abro, abrupto, uma das janelas da cozinha. A chama baila nervosa no ar, tal qual eu, até que enfim encontra o seu destino e cumpre a sua vontade. Retenho o fumo nos pulmões o máximo que posso, como que a punir-me em castigo por uma falta que afinal só eu conhecia. Cão… Entretanto a água que se prostrava do céu ensopava-me até aos ossos. De que me importava? Cão… Cão é o… O fumo subia ao encontro das nuvens mijonas. E eu, eu voltava a descer ao meu inferno, por descuido e não intencionalmente; quando assim estamos predispostos a nossa mente é capaz das piores peripécias, bem o sei.
Devia estar feliz, não é? Questão a que não respondi enquanto o episódio de birra se esbatia da centralidade das minhas cogitações. Ao invés procurei de novo o papel de cozinha, não para o nariz e sim para enxugar as mãos que pingavam os quadriculados desenhos do chão. Na realidade, esquecera-me por absoluto da constipação contraída e que se afirmava mais séria com uma pontinha de temperatura à mistura. Desapertei uns quantos botões da camisa e arranquei-a do corpo juntamente com a camisola ensopada que se lhe encimava. Tudo de uma vez. Abandonei as duas peças de roupa amontoadas sem qualquer cuidado em cima de um banco e fui tentar remover do tronco a restante água que se entranhara pelos tecidos. Com a toalha de banho. As questões preconcebidas de etiqueta tinham sido irrevogavelmente suspensas. O imediato era agora onde eu vivia sem questionar. Finas linhas de água, ou assim as percepcionava, escorriam para o rosto. Dei conta que também o cabelo se encharcara muito além da sua capacidade de retenção. Esfreguei-o desabridamente sem pronunciar uma palavra, nem por dentro. Quando me vi reflectido no espelho foi-me custoso reconhecer-me. É assim uma pessoa? Aquela imagem retribuída não parecia de gente. Reflectia-me quebrado e destituído da minha dignidade humana. Ao vê-la, impeli-me inconscientemente a estacar todo e qualquer movimento. Não, não podia ser assim. Aquele não era eu. Não podia ser. Impossível. Agastado, obriguei-me a voltar a pensar. De que servem os neurónios se não se usam? Retomei a certeza de ser um ser; um ser pensante e dotado de razão e discernimento, não somente moldado por enxurradas de emoções desenfreadas. Notei que paulatinamente o calor do sopro da vida reaparecia com evidente consciência. Devo dizer, no caso, o frio. Sentia-me gelado, contaminado por um frio que entranhava cada extremidade nervosa. Porém, do mal o menos. Encontrava-me vivo e bem vivo; e ciente, coisa que me escapara sem que por isso desse conta. Por fim a imagem sorriu-me. Foi o suficiente. De facto, devia estar feliz. A verdade era essa sem que conseguisse encontrar-lhe qualquer rasto de impureza. No fundo sabia-o. Pressentia que assim era até às raízes da minha alma. Sosseguei. Os espectáculos que enceno na tua ausência… que dirias, se me visses assim? Na verdade, não quero saber. Na verdade, não aconteceriam na tua presença. Se as pessoas têm segredos, mesmo aquelas que mais parcelas da sua vida comungam? Têm. Este é um deles, um dos quais não estou disposto a abrir mão – desculpa.
No nosso quarto olhei as tuas coisas e os teus lugares; e mais tudo aquilo que não é nem de um nem do outro, mas ao invés comum e pertença de ambos. Puxei por uma fotografia nossa, bem junto à televisão que tão poucas vezes ligamos, instantâneo do real capturado e enquadrado numa moldura pela qual não tenho a mínima simpatia; tu gostas dela, da moldura, e eu, por isso, tolero-a. Importava-me apenas o instantâneo capturado e a ternura que parecia querer transbordar-lhe pelos quatro cantos. Fixei-a intensamente, com o olhar e com as mãos. Parecia querer tocar naqueles dois seres retratados, de verdade e não no papel. Um instantâneo é exactamente o que é, uma forma rebuscada que pretende agrilhoar uma realidade que já foi e que é irrepetível. Óbvio que os seus esforços, não sendo inconsequentes, se demonstram amplamente em vão. Dois rostos colados, sorrisos tão abertos quanto espontâneos, dois seres de tamanha forma embrenhados na sua felicidade que se esquecem que o ademais do mundo também existe. Felicidade. Não deveria eu estar feliz? Amanhã o rosto em falta iria reparar uma espécie de realidade suspensa, voltaríamos a colá-los refazendo o completo da figura. Devia estar. Porque hesito? Reponho a foto no sítio. Será de facto aquele o seu sítio? Ou de outra forma, terá sítio para além daquele que se apropriou quando ocorreu em tempo presente? Esqueço o devaneio, não estou disposto para mais ventanias por entre os miolos. Debruço-me nessa cama tão enorme sem ti. Acabo por nela me estirar, encerrando os olhos em sintonia com um suspiro profundo. Quero adormecer. Quero o amanhã. Quero-o, com todo o desespero das minhas forças. Merdas à parte, sabes quanto te amo miúda? Sabes, sim. E mesmo com a distância a entrepor-se sinto o teu. Falta pouco, tão poucochinho. Decidido arranco o edredão da amálgama de roupa de uma cama por fazer, espraio-o sobre o meu corpo. Permito que a tranquilidade em mim penetre. Penso qualquer coisa, coisas, sei lá. Todo o desequilíbrio é acossado e deposto. Sinto-me em paz. Comigo.
Se sou feliz, ternura? Sou.
Já comi, já pus a loiça na máquina e só não alimentei o cão porque não o temos. Fazia parte das nossas intenções, recordas-te? Algo protelado já que nos demorados concílios em que debatíamos que tipo de cão para, nunca chegáramos a consenso. Porém, seja-se apologista da verdade, o certo é que a pressa quanto ao amigo canino não falava assim tão alto. Temos tempo, concordávamos provisoriamente até que chegasse a concordância final de escolha. Eu cá teria preferido um gato, hipótese que de imediato descartaste. O cão, então. Largo a pastilha na máquina e sacudo das mãos, directo para o chão, o pó remanescente que a elas se colora sem ter sido convidado para permanecer. Inspiro pelo nariz, incomodado. Constipei-me, raios partam estas bruscas mudanças meteorológicas. Nem cão nem gato. Eu e a máquina de lavar loiça, cujo labor inicio mal encerro a portinhola. Rasgo uma folha de papel do rolo de cozinha e assoo o nariz, todavia sem que isso contribua para reparar o meu incómodo. Encolho os ombros, paciência – o que hei-de fazer? Safo-me, contudo, do teu discurso de censura: regressas amanhã e não irás perceber o meu gesto que deixei de executar à tua frente por ter percebido – entenda-se, após teres-me feito perceber sem margem de apelo a dúvida – que te repudia e enoja. Há cá uma diferença entre lenços de papel e o papel dos rolos de cozinha. Todavia, nem pretendo reentrar nessa argumentação que foste peremptória, talvez até imperativa, muito para além do habitual. Na minha rendição, concedo-te a atribuição simbólica que distribuímos pelos objectos: se é rolo de cozinha, então o seu papel remete para afazeres adstritos a práticas que remontam da sua adjectivação; se é papel em que no rótulo vem impressa a palavra lenços, então o seu uso referencia-se também mas não só à limpeza não da cozinha mas do sótão atafulhado de agentes bacterianos que muitas vezes o nariz, ou o seu interior, que é mais correcto, o é. Ok, quem sou eu para pretender boicotar o teu jogo de papéis? Sim, já sei que sei mais do que isso, que mais do que um dever é minha obrigação: contudo, não poderia eu por uma vez separar o trabalho da esfera pessoal, impondo-lhe uma clivagem tal que pudesse ser, por assim dizer, duas pessoas? Levo o recorte usado do rolo para a casa de banho e submeto-o às torturas do turbilhão de água evacuado pelo autoclismo. Porque perco tempo e queimo paciência com estes devaneios inúteis? Afinal a tua presença só amanhã se materializará pela casa. E não saberás, ai pois não, de nada pela minha boca que se firmará mais firme que a concha de um bivalve. Não por cobardia, antes para evitar aborrecimentos inúteis. Quer a mim, quer a ti. Regressas. Quero o confortável silêncio de um beijo unido por abraço há tanto tempo desejado. Discutir é cenário que não quero sequer imaginar para amanhã. Primeiro os mimos, só a seguir a trivialidade no nosso quotidiano.
Onde é que eu ia? No cão? Não, já sei: a chuva e a cidade. Hoje o verbo sai-me pouco fluído, de certo por défices graves no emaranhado que amiúde enleia a imaginação. Não quero saber, que se lixe. A verdade é que penso numa coisa e numa apenas. A minha mente vive já no dia de amanhã, debruçada e deleitada nos prazeres sensitivos que o do teu colo oferece em dádiva desinteressada que não exige retribuição. Entretanto o céu chora, a cidade banha-se deliciada. Chove no teu Porto? Sei que sim, embora os meus olhos não vejam.
Se me esqueci das dúvidas que assomaram à mente? É evidente que não. Sentença imediata desprovida de hesitação. Não são fortuitas. Silencio-as, apenas. Faço de miúdo e de miúdo faço de conta. Faço de conta que não existem. Por ora. São demónios que não consigo afastar sem lhes aplicar devida exorcização. Sinto-os, ainda que silenciosos, a morderem implacavelmente pedaços de alma. Pedaços bem grandes, impossíveis de ignorar. Não mata, mas mói – assevera a sapiência popular. Corroboro: como o inverso? – não há como… antes houvesse. Onde param as nossas âncoras que até hoje se mantinham inamovíveis e aguerridamente agarradas à certeza? Enferrujaram. Sim, decerto foram enferrujando. Será a corrosão que subjaz irremediável? Conheço a resposta, bem demais para a escarrapachar numa palavra. Conduz-me para outro universo, para o universo da dor emocional. Que criaturas desbragadas, os meus demónios. Feias.
Coloco as severas dúvidas em pausa. Amanhã. Para cima de um mês que os meus olhos não encontram os teus. Aquelas encenações em que, agarrados aos nossos portáteis, nos encontrávamos via espaço virtual para mim não contam. Não contam para nada; ou quase, já que alguma certeza se insinua. Pouco importa. Centro novamente a atenção no dia de amanhã, dia em que como um cão portarei de vigia à porta até que por ela adentro caminhes. Devaneio, se calhar já temos o cão – só ainda não tinha dado conta disso. Tolo, escarneço de mim com raiva a aflorar-se na voz dos meus pensamentos. Recupero imagens que ainda estão por vir, imagino-te a afagares-me o cabelo e a despenteá-lo com as tuas mãos. Regressa o cenário do cão, só me falta a língua de fora e rebolar-me pelo chão. Constrito a tolerância que ainda havia tido comigo: tolo, não; palhaço – mas alguma vez sou algum cão, assiro ferrenho com palavras das mais bem feias a dar o mote a uma eventual interrogação. Busco e rebusco nos bolsos das calças pelo maço de cigarros. O nervoso, esse, miudinho. Tiro o primeiro, partido. Arremesso-o violentamente sem preocupações com a direcção. Já a ficar esganado, sai o segundo. Torto, ainda assim intacto de ponta a ponta. Endireito-o com os dedos enquanto o encaminho para os lábios e abro, abrupto, uma das janelas da cozinha. A chama baila nervosa no ar, tal qual eu, até que enfim encontra o seu destino e cumpre a sua vontade. Retenho o fumo nos pulmões o máximo que posso, como que a punir-me em castigo por uma falta que afinal só eu conhecia. Cão… Entretanto a água que se prostrava do céu ensopava-me até aos ossos. De que me importava? Cão… Cão é o… O fumo subia ao encontro das nuvens mijonas. E eu, eu voltava a descer ao meu inferno, por descuido e não intencionalmente; quando assim estamos predispostos a nossa mente é capaz das piores peripécias, bem o sei.
Devia estar feliz, não é? Questão a que não respondi enquanto o episódio de birra se esbatia da centralidade das minhas cogitações. Ao invés procurei de novo o papel de cozinha, não para o nariz e sim para enxugar as mãos que pingavam os quadriculados desenhos do chão. Na realidade, esquecera-me por absoluto da constipação contraída e que se afirmava mais séria com uma pontinha de temperatura à mistura. Desapertei uns quantos botões da camisa e arranquei-a do corpo juntamente com a camisola ensopada que se lhe encimava. Tudo de uma vez. Abandonei as duas peças de roupa amontoadas sem qualquer cuidado em cima de um banco e fui tentar remover do tronco a restante água que se entranhara pelos tecidos. Com a toalha de banho. As questões preconcebidas de etiqueta tinham sido irrevogavelmente suspensas. O imediato era agora onde eu vivia sem questionar. Finas linhas de água, ou assim as percepcionava, escorriam para o rosto. Dei conta que também o cabelo se encharcara muito além da sua capacidade de retenção. Esfreguei-o desabridamente sem pronunciar uma palavra, nem por dentro. Quando me vi reflectido no espelho foi-me custoso reconhecer-me. É assim uma pessoa? Aquela imagem retribuída não parecia de gente. Reflectia-me quebrado e destituído da minha dignidade humana. Ao vê-la, impeli-me inconscientemente a estacar todo e qualquer movimento. Não, não podia ser assim. Aquele não era eu. Não podia ser. Impossível. Agastado, obriguei-me a voltar a pensar. De que servem os neurónios se não se usam? Retomei a certeza de ser um ser; um ser pensante e dotado de razão e discernimento, não somente moldado por enxurradas de emoções desenfreadas. Notei que paulatinamente o calor do sopro da vida reaparecia com evidente consciência. Devo dizer, no caso, o frio. Sentia-me gelado, contaminado por um frio que entranhava cada extremidade nervosa. Porém, do mal o menos. Encontrava-me vivo e bem vivo; e ciente, coisa que me escapara sem que por isso desse conta. Por fim a imagem sorriu-me. Foi o suficiente. De facto, devia estar feliz. A verdade era essa sem que conseguisse encontrar-lhe qualquer rasto de impureza. No fundo sabia-o. Pressentia que assim era até às raízes da minha alma. Sosseguei. Os espectáculos que enceno na tua ausência… que dirias, se me visses assim? Na verdade, não quero saber. Na verdade, não aconteceriam na tua presença. Se as pessoas têm segredos, mesmo aquelas que mais parcelas da sua vida comungam? Têm. Este é um deles, um dos quais não estou disposto a abrir mão – desculpa.
No nosso quarto olhei as tuas coisas e os teus lugares; e mais tudo aquilo que não é nem de um nem do outro, mas ao invés comum e pertença de ambos. Puxei por uma fotografia nossa, bem junto à televisão que tão poucas vezes ligamos, instantâneo do real capturado e enquadrado numa moldura pela qual não tenho a mínima simpatia; tu gostas dela, da moldura, e eu, por isso, tolero-a. Importava-me apenas o instantâneo capturado e a ternura que parecia querer transbordar-lhe pelos quatro cantos. Fixei-a intensamente, com o olhar e com as mãos. Parecia querer tocar naqueles dois seres retratados, de verdade e não no papel. Um instantâneo é exactamente o que é, uma forma rebuscada que pretende agrilhoar uma realidade que já foi e que é irrepetível. Óbvio que os seus esforços, não sendo inconsequentes, se demonstram amplamente em vão. Dois rostos colados, sorrisos tão abertos quanto espontâneos, dois seres de tamanha forma embrenhados na sua felicidade que se esquecem que o ademais do mundo também existe. Felicidade. Não deveria eu estar feliz? Amanhã o rosto em falta iria reparar uma espécie de realidade suspensa, voltaríamos a colá-los refazendo o completo da figura. Devia estar. Porque hesito? Reponho a foto no sítio. Será de facto aquele o seu sítio? Ou de outra forma, terá sítio para além daquele que se apropriou quando ocorreu em tempo presente? Esqueço o devaneio, não estou disposto para mais ventanias por entre os miolos. Debruço-me nessa cama tão enorme sem ti. Acabo por nela me estirar, encerrando os olhos em sintonia com um suspiro profundo. Quero adormecer. Quero o amanhã. Quero-o, com todo o desespero das minhas forças. Merdas à parte, sabes quanto te amo miúda? Sabes, sim. E mesmo com a distância a entrepor-se sinto o teu. Falta pouco, tão poucochinho. Decidido arranco o edredão da amálgama de roupa de uma cama por fazer, espraio-o sobre o meu corpo. Permito que a tranquilidade em mim penetre. Penso qualquer coisa, coisas, sei lá. Todo o desequilíbrio é acossado e deposto. Sinto-me em paz. Comigo.
Se sou feliz, ternura? Sou.
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