domingo, 24 de novembro de 2013

ausências evidentes, take vi

Acordei bem cedo. Bom, pelo menos consideradas as minhas medidas e padrões. As contas que num ápice executei, que também nada tinham de difícil, diziam-me que dormira cerca de quatro horas, não mais. À chuva substituíra-se-lhe um sol tímido que só com púdica vergonha ousava espreitar, aqui e ali, por entre uma e outra nuvem. Levantara-me com a exacta roupa com que me deitara, umas calças de ganga que usara durante todo o dia anterior e pouquíssimo mais. O tronco desnudado ressentia-se da quebra de temperatura após ter retirado de cima de mim o edredão que me envolvera no sono. Talvez por isso tenha espirrado umas cinco vezes seguidas; ou terá antes sido pelas toneladas de pó, e dos seus aliados filamentos de cotão, que tomaram a princípio de cerco e no entretanto em conquista de facto os espaços do nosso quarto? Seja como for, também pela gelada chuva apanhada quando fumara na véspera o último cigarro. Sentia a garganta arranhada e dorida, os pulmões pesados, o pingo no nariz que teimosamente permanecia. Bom dia, atiro de suspenso para o ar num volume contido e com uma tonalidade sarcástica.

Liguei o computador, já com uma sweatshirt manhosa mas quentinha a cobrir os costados, para confirmar no site dos caminhos de ferro o que (me) tinhas transmitido. Gare do Oriente, 21h22, chegada do alfa pendular oriundo da Campanhã. Por que razão escolheras apear-te no Oriente? Saudosa de uma Expo que nunca chegaste a visitar? Como tantas vezes os teus motivos são insondáveis desisti das indagações remetendo a minha atenção para considerandos mais práticos. Como sempre, o apartamento devia mostrar-se impecavelmente apresentável quando por ele a dentro te trouxessem os teus seguros passos. Sem tirar nem pôr. Era um facto que se havia instalado na mente, por mais asquerosas e brejeiras que me parecessem as tarefas a executar. Baixei a tampa ao computador e palmilhei todos os recantos olhando atentamente em volta, sondando cada milímetro do nosso templo profano em busca de tudo o que parecesse deslocado; sabes, sou muito mais exigente quando só e te aguardo do que quando estamos juntos – talvez seja alguma forma ou estratégia de compensação, porém não estou certo. Certo tinha que muitas horas intervalavam o momento de reencontro e que, não tendo na agenda obrigação que me fizesse deslocar a outros lugares, vantagens da nossa profissão, as iria fazer valer.

Começara com o pé direito, já que não teria que me preocupar com loiça utilizada pois que a havia posto a lavar breves horas antes de me ter recolhido ao ninho que tão pouco se parece como tal na tua ausência. Arrastei o aspirador até ao quarto para fazer guerra a quantidades absurdas de cotão que pareciam brotar espontaneamente do soalho flutuante. Porém, quando estava quase a fazê-lo, abstive-me de ligar a máquina: parecia-me escandalosamente cedo para tamanho troar e embora não tenhamos calorosa relação com nenhum dos nossos vizinhos o respeito mútuo tem sido uma constante, coisa de gente que se conta e diz civilizada, seja lá o que se pretende transmitir com o que parece uma patranha preconcebida e mobilizadora de comportamentos padrão. Depressa me deparei com opções alternativas, como por exemplo recolher a roupa amontoada que havia semeado pela habitação durante este período da tua não presença física. Era mais sensato começar por aí, pelos pares de calças displicentemente abandonados no chão junto à cama, coisa habitual, e defronte do sofá da nossa sala, pelas camisas e camisolas enrodilhadas que preenchiam vazios nossos pelas cadeiras da mesa de jantar, nos bancos de cozinha, aos pés da cama e só Deus sabe mais onde; dos boxers que faziam fila tanto no quarto de banho como por debaixo daquele estrado e colchão aos quais, juntos, chamávamos cama. Apeteceu-me enfiar toda esta maralha anómica na máquina da roupa e lavá-la a frio, mas logo constatei a patetice dessa espécie de disparate. Por que razão danada nunca aprendi a funcionar com esse aparelho de tambor? Não sei. Facto é que não iria passar a sabê-lo agora. Num mundo onde tudo, quase tudo, incluindo pessoas, é tratado de modo descartável observei que seria igualmente lógico que também um dia todo o vestiário seria tratado da mesma forma. Sorri. Sabia-me estar a ser tolo exactamente por não saber por onde começar a labuta para o embelezamento artificial e aparente do apartamento. Tudo o que me bastava, registei, eras tu. Tu, como se a tua mera presença pudesse reconduzir a vida quotidiana ao seu regular funcionamento. Disparate. Contudo, disparate que me envolvia na melhor sensação de conforto e de continuado aconchego. Os homens são loucos. E as mulheres, as mulheres idem, se bem que de longe mais belas e airosas na sua entrópica loucura; especialmente tu, que manténs os meus neurónios num arraial de sinapses em catadupa ainda que tantas vezes sem um sentido que se possa evocar como racional ou disposto por atributos dessa coisa a que denominamos razão sem saber muito ao certo nem a profundidade nem as peculiaridades do seu significado. Com vocês estamos perdidos. Sem, somos como um quadro de traços desalinhados e inacabado porque, sem apelo, arrasados pela incompletude da nossa condição. Regressa-me ao rosto o sorriso. Não estava para travar conversas dessa dimensão comigo, para mais com a manhã ainda menina. Sabes, sou como os morcegos: funciono em pleno nas horas de escuridão, pela noite dentro. Sabes, eu sei. Que estarias tu agora a fazer na tua cidade? Desliguei a ficha, há tanto por fazer.

Abri o portátil. Mais uma vez. Talvez conseguisse comer algumas horas se eventualmente me embrenhasse em textos do meu trabalho. Olhei-os da mesma forma que um boi contempla um palácio, sem os entender e incapaz de os apreciar. Surgiam-me aos olhos tão-somente letras somadas e baralhadas, enfim, dispostas por uma qualquer lógica que agora me escapava de todo. Já tu és bem mais pragmática do que eu. Num ápice decifrarias sem qualquer dificuldade o código instituído pelas palavras e frases para as quais olhava alheado e sem interesse. Também tu és muito menos resistente a funcionar em sintonia com as ditas horas normais de trabalho, prefere-las. Eu, pelo inverso, não me entendo nessa lógica e sempre preferi delinear objectivos em detrimento de uma esquematização rígida e operacional de como os alcançar, um dos aspectos em que sou indubitavelmente mais flexível do que tu, tanto para melhor como para pior. Chega. Desisti. Para mais tarde retomar. E aí sim, provido do pleno das minhas capacidades intelectuais. Eras tu o centro do meu universo; melhor, era-lo todo. Seriam risíveis empreitadas que exigissem outra coisa que não apenas a mecânica imbuída no meu esquema mental. O meu pensamento estava exclusivamente direccionado para o teu abraço, para os beijos com que ansiosamente prendaríamos os nossos lábios, os nossos rostos, os nossos pescoços que exalariam os nossos cheiros de um para o outro, tudo o mais que ocorresse entretanto vergado à nossa irredutível vontade, actos que antecipava com a maior vontade e impaciência do mundo. Como te amo, miúda. A distância faz-me mal, é como uma gripe que assola o espírito, por muito tonta que te pareça a metáfora.

Ainda assim consegui perder, deveria dizer ganhar, uma hora nestes meus devaneios. Já não me parecia despropositado utilizar o aspirador, embora talvez fosse ainda demasiado cedo. Poderia muito bem começar por limpar o pó que constatava abusivamente acumulado no móvel que sustentava a televisão, uma foto dos dois e um solitário vazio; deveria preenchê-lo, antes da tua chegada, com uma das tuas flores predilectas, talvez uma rosa rosa. Perscrutei o pó com um olhar mais sério. Que gaita, nunca sei o que fazer primeiro: limpar o pó ou aspirar. Quantas vezes já mo disseste? Certamente tantas quantas as que esqueci. Não é por mal, ternura. Às vezes, ou não tão pouco como isso, sou um bocado avoado. Talvez porque continua a deleitar-me escutar-te, seja lá sobre o que for desde que… o desde que fica por ora em trânsito, por terminar: traz à memória coisas pesadas, material inverso ao daquele de que são feitos os sonhos. Há sempre um desde que, um porquê, um mas que assombra a vivência de todo o ser humano. Deixemo-los por agora, perdidos num qualquer recanto obscuro e quase inacessível no âmago da massa cinzenta; ou branca, sei lá, escassos são os meus saberes de neurologia e das neurociências em geral, que é o mesmo que afirmar, na prática, nada. 

A imagem da rosa rosa tomou-me de tão vivida, pela necessidade que antecipei impossível de incumprir, que de imediato me imaginei em incursão pela que melhor te fizesse jus. Cumpria a mundana tarefa de ir aprontando a casa para o teu regresso enquanto intimamente indagava quais os locais onde podia obter essa formosa rosa ou ainda se deveria adquirir duas ao invés de uma apenas. Onde obtê-la não era coisa que me criasse grandes obstáculos ou dúvidas, já o quantas falava-me de outra forma. Projectava na mente a imagem do solitário albergando uma tanto como duas, incapaz de me decidir de facto. Diz o bom senso que a nomenclatura nos oferece resposta imediata: solitário, portanto uma só flor. Todavia, a nossa condição, o vivermos as nossas vidas no seio de um regime de comunhão, abria como que obrigatoriamente portas a outra e não tão ortodoxa possibilidade, a saber às tais duas rosas que representariam juntas por força de metáfora as nossas duas pessoas bem como a natureza da nossa união. À guisa deste pensar o trabalho investido em colocar o apartamento num brinco tornou-se bem mais fácil e menos aborrecido, sendo que quando o terminei o espanto assomou-se já que não me esperava tão lesto e eficiente. De facto, isto do tempo psicológico tem muito que se lhe diga. Gostava inclusivamente de lhe dedicar uma atenção mais devida, a este assunto, porém desviava-se por demais das tarefas a que era chamado a executar na lide das actividades da esfera profissional. Paciência, talvez quando puder usufruir de algum tempo extra livre o venha a fazer, pensei mesmo sabendo que tal não viria realmente a suceder por motivos que não importa agora elencar. Enfim, dei-me por satisfeito por a casa estar finalmente própria para te acolher, coisa suficiente para me provocar um satisfeito sorriso que fez esquecer o cansaço físico devido ao aparato que fora conduzindo por mais de um par de horas, bastante mais.

O dia começava a esconder o seu rosto, aos poucos cedendo lugar ao soturno manto negro da noite que tanto estimo. Embora esmiuçasse os prós e contras de uma ou duas rosas rosa a preencher aquele esguio solitário, não me conseguia decidir com vincada certeza. Precisava, o que era mais que certo, era de sair de casa o quanto antes se pretendia adquirir os ditos complementos ornamentais. Seriam as flores o complemento ou ao invés sê-lo-ia o objecto que as albergaria? Mente vadia, o tempo escasseia e ainda assim te pões aos devaneios tontos como se tivesses em mãos todo o tempo do mundo. Urgia, isso sim, ir buscar as flores antes de ir buscar o éden que elas, agora sim, complementariam: tu, miúda. Peguei as chaves, de casa e do carro, e bati a porta já com um destino delineado célere pelos meus neurónios. Que se lixe, o elevador subia ao meu encontro, duas.

2 comentários:

  1. Devias escrever mais vezes assim :)

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  2. :)
    vai na sexta etapa. é para continuar. talvez escreva mesmo o tal livro. talvez mantenha este blog exactamente com esse intuito.
    thx.

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