Ontem. Descansava merecido descanso após mal fadado projecto, arrastado há mais de uma semana, consumindo recursos de corpo e mente. Não rendido, ofereci-lhe apenas a minha exaustão cumulada de algum alívio pessoal, ainda que apático e indiferente. Ontem. Entreguei-me a um sono leve, ia a tarde por metade, que suspendeu o presente. Vivi regressão em sonho a dias de infância felizes vividos em Coimbra, em casa de tia-avó. Sala de estar e jantar logo que se entrava pela porta, Rainha Santa, como não podia deixar de ser, acomodada em estante à medida da porcelana; em frente a cozinha e à esquerda corredor conducente à escadaria das escadas dos quartos no primeiro andar e ao que chamavam loja, um espaço amplo de cinzento-cimento com um odor a bafio imperturbado e que acomodava a única casa de banho da casa, carregada de teias e suas aranhas que enchiam de medo o imaginário fecundo de uma criança; em cima, no andar dos quartos, ainda uma sala com televisão adquirida com exclusivo propósito de entreter os sobrinhos-netos sempre que a visitassem, invariavelmente nos meses de verão. Quase não conheço Coimbra com chuva, mas sim a do sol e calor que abraçavam corpo adocicando a alma. Nos quartos os colchões com a palha a furar por entre pano. As noites passadas na cozinha, onde sorvia o melhor café do mundo, apertando as quentes, sem que em demasia, malgas-chávenas entre mãos, inalando aquele odor que não esqueci e que se fez parte de mim. Mais tarde, ditou o sonho, a casa sozinha. E também eu, só. Só e com um somado de aniversários na pele. O presente foi suspenso, porém não anulado. Sozinho, com todas as características que me acompanham contemporaneamente, entrei casa a dentro. O dia era o de agora. Presente suspenso, contudo presente presente. Vagueei pelas divisões de outrora, iguais só que desprovidas da animação humana de antanho. Parei defronte das portas de entrada, também elas inalteradas. Abriam-se em par, o canhão da fechadura gigantesco para os parâmetros modernos, a chave de ferro fazendo-lhe justiça; transversal à altura destas, uma trave de madeira encaixava fazendo entrever tempos mais idos carentes de fechadura de chave e dos ferrolhos de ferro só depois, desconheço se muito ou pouco, aplicados metodicamente. Por fim deixei de estar só. As memórias acompanhavam-me, e por boa companhia se entenda. Até que às memórias o acrescento da respiração de outro alguém; não um alguém qualquer, um alguém para quem tudo aquilo era um universo desconhecido e estranho, mas particularmente um alguém que me apertava a mão, num entrelaçar de dedos, e assim se expunha como ente querido e muito desejado. Ao entrelaçá-los sorri e soube, desde logo, que também nesse alguém se desenhara um sorriso, um belo sorriso, o mais belo dos sorrisos. Em conjunto, então, calcorreámos todos os metros daquela casa. Creio que, como se perseverantes, lhe sentia os cheiros de antes, partilhados agora com cheiros presentes e, quem sabe, cheiros futuros igualmente ou mais agradáveis ainda.
Hoje o tédio apossou-se do dia. Decidi responder-lhe com umas leituras mas aqui, fora as técnicas que comigo trouxera e que só de olhar me causavam a mais profunda repulsa e até asco, as opções eram algo diminutas. Para meu arrependimento posterior, pus olhos em “O Meu Nome É Legião”. Logo após as primeiras páginas, e uma após outra, o fastio crescia tamanha era a seca a que me estava a sujeitar. Nunca fui de amizades com as obras do autor, enquanto escritor que da pessoa nada conheço, e esta parecia particularmente propensa para que mantivesse a minha inolvidável ou pela menos resoluta (má) opinião. Confesso que li tão somente meia centena de páginas, confesso igualmente que não sei se tenho estômago para papar mais outras tantas e menos ainda para caminhar até ao final. Estando já enfadado, poderia tal facto ocorrer como se de suicídio por tédio em dose cavalar se tratasse. Vale que hoje, o dia de hoje, está preso por fios de minutos. Em breve será hoje o dia de amanhã – e por aí fora até que ninguém mais se importe em contar os dias em termos histórico-contínuos, ou que simplesmente deixe de haver quem o pudesse. Tamanhas são as interferências desse quase não-sentimento, o tal de tédio, que o meu cérebro congelou embrutecido sem lhe ocorrer ter ainda meia estante de livros em sentido oposto àquela a que me dedicara a espreitar. Pouco importa. Encerrei o livro para me dedicar a deliciar-me com o sonho que, estando eu em estado de semi-vigília ou semi-onírico, como vos aprouver, que viera visitar-me ontem. Esgacei os lábios, que assim descobriam a cremalheira por maioria de razão a mais das vezes atrás deles dissimulada. Já tenho um passado, não só aquele que recordei; vou tendo um presente, que se escapa como areia das mãos, vivido melhor ou pior quotidianamente; vou ter, por isso espero e ambiciono, um futuro… um futuro a que um dia, suprimindo potenciais surpresas desagradáveis, chamarei passado. Observando com cuidado, nunca caminhei solitário e menos ainda em solidão. Mais, caminho acompanhado como nunca antes. Caminharei, seguramente, embora só os dias do por vir o possam ditar com exactidão, acompanhado numa quase perfeição desenhada a traços que se reproduzem da comunhão com o outrem mais que querido e mais que desejado.
Mosteiro de Santa Clara-a-Velha
Findo com uma frase que poderá ser peculiar, se mal entendida. Aliás, como tantas outras… Mas não a (me?) explicarei.
“Possuidor desse conhecimento, o homem é o animal que não tem crias acidentalmente e sabe o que anda a fazer.”
‘História das Más Ideias’, Eduardo Gil Bera
Sabes o que me apetece dizer?...Bendito tétio... Gostei mesmo muito de te ler.
ResponderEliminar:$
ResponderEliminarMas garanto que não fiz por mal. ;) Beijinho.