Cheguei ofegante e atrasado. A rampa
de betuminoso que conduz ao edifício que tanto queria alcançar parecia não ter
fim, como nos filmes. Dentro do edifício, outro obstáculo. Dois lanços de
escadas para trepar. Passei o computador para a mão esquerda e ajudei o trote
com a mão direita a puxar contra mim o corrimão. Os restantes metros eram
fáceis. Com todos repentinamente a voltar os seus olhares para mim, entrei na
sala.
O músculo cardíaco bombeava
sangue a uma velocidade vertiginosa. Porém, sentia que as gotas de adrenalina
tinham deixado de pingar e iam, suavemente, deixando de fazer efeito. Começara
o processo de recuperação do esforço a que me obrigara. Limitei-me a olhar de
frente, fazendo-me por esquecer os rostos que em mim se fixavam com espanto e
talvez também com uma atitude de quem pretende repreender. Depressa, contudo,
se tornaram mais afáveis para comigo, talvez o meu cansaço tenha despoletado
sentimentos opostos àqueles que gostariam de imprimir naquele instante. Seja lá
como for.
Vi os teus olhos meigos, ainda
que chispados devido a um atraso que vias injustificado e injustificável,
cruzarem-se com os meus. Nem soergueste o queixo mais do que os milímetros estritamente
necessários para me confrontar. Mantiveste-te profissional, fazendo regressar a
tua atenção para com a jovem à tua frente. Profissional. Profissionalíssima.
Jamais alguém entendeu que por breves instantes havias quebrado a conexão com a
minha colega. Só quando os demais te interromperam é que te dignaste a
prestar-me atenção. E não tinhas outra hipótese, eu agora estava ali e tinha
todos os outros como testemunhas. Ah, afinal sempre conseguiu vir, colega –
brindaste tu com mágoa e desalento, talvez mesmo com umas acendalhas de rancor,
evitando sempre, e com um brilhante sucesso, que os demais desconfiassem do
laço que nos vai unindo.
Observei a plateia de luxo à qual
ia servindo um sorriso mesclado de saudação e de sincero pedido de desculpa
pela chegada tão em cima da hora. Percebi, desde logo, que havia perdido a pole
position para outros colegas, mas estava longe do meu pensamento resmungar.
Aliás, como poderia? Ainda que tivesse manifestado qualquer desagrado sabia que
me desintegrarias, primeiro com o teu olhar e de seguida com um discurso ameno,
como é teu hábito, mas prenhe de considerações que me embaraçariam até às
entranhas – e como tu, melhor do que ninguém, o sabes fazer. Colega, as minhas
desculpas por este atraso indesculpável, lamento imenso, um imprevisto… e
fiquei por aí, com as palavras a voarem perdidas e inacabadas no ar, até porque
nem eu mesmo saberia inventar mais o que acrescentar. Nem valia a pena. Sorriste,
sempre impecável com a postura correcta e dada à situação, e nesse sorriso
ordenaste-me que me calasse e que tomasse um lugar sem delonga e tentando
incomodar o menos possível todas as pessoas que estavam já sentadas nos seus
lugares – e tudo isto sem precisares de proferir uma única palavra, imagine-se.
Entre os desculpe e obrigado, lá abanquei num lugar miraculosamente vago junto
à janela. Expirei o mais fundo que consegui, coisa que não fiz de forma ciente,
e pedi ao meu coração que me desse tréguas, cavalgando um pouco menos depressa,
e à minha garganta que não fosse tão ríspida comigo, seria o mais célere
possível em atribuir-lhe a água por que tanto, e justamente, reclamava.
Agora com o netbook colocado em
cima do tampo da mesa recordei-me que na noite pretérita te havia trocado pelo
computador. Tentei evitar entrar em conflito comigo mesmo por causa desse
acontecimento e por isso girei a cabeça em direcção ao vidro da janela que me
apresentava uma paisagem bem distinta daquela que eu percorrera até estar finalmente
no interior do edifício. Ia começando a inquietar-me com o sucedido na noite
que passara quando a tua voz interrompeu, decidida, o meu raciocínio. Agradeci-te
por essa façanha mais tarde, se bem que na realidade nunca to tenha dito.
Sobranceira e cândida eras a única pessoa erguida na sala. Todos te olhavam,
todos te escutavam, todos bebiam a tua fonética e os teus gestos, delicados
como se ensaiados ao pormenor. Estavas bela. És. Finalmente sossegado, com o
ritmo cardíaco novamente a funcionar como a mais bem cadenciada das máquinas, a
garganta afinada ao detalhe e desprovido de qualquer vestígio de suor que o
esforço impusera à minha testa, ao meu pescoço, às minhas mãos e onde mais ele
se tivesse instalado. Apurava a audição, já não comprometida pela respiração
ofegante e assíncrona de minutos atrás, e ordenava aos miolos que se
concentrassem no motivo que me havia trazido ali; obtive cem por cento de
sucesso. Todavia, permanecia com o maior dos cuidados, continuava a temer-te.
Se tinhas boas razões para não estares de bem comigo, hoje havia-te dado ainda
mais, as suficientes para que estivesses honestamente zangada comigo. Cerrei os
olhos por uns instantes. Firmei os maxilares um no outro, foquei-me: não havia
mundo para além daquela sala.
Apresentaste os intervenientes de
maneira tão sóbria e simultaneamente tão dócil que isso te valeu uma valente ovação
no final. Confesso, inclusive, que fiquei com uma pitada de ciúme, já sabes
como sou. De seguida sentavas-te e escutavas como se te tivessem transportado
para um recital de piano e cordas, imperturbável, serena e sempre com o teu sorriso
jovial desenhado na face. Quase me distraías, mas também eu nestas circunstâncias
sou imperturbável, se bem que nada airoso como tu consegues ser, antes o
inverso: nota-se a tensão nas minhas têmporas, os olhos tremendamente sérios
coadjuvados por um arqueamento forçado das sobrancelhas, o semblante
empedernido como o de uma estátua talhada mais de um milhar de anos antes do
nosso tempo. Somos tão diferentes. E tu és sempre mais bela. E eu, eu sou o
pragmático, implacável com os erros, próprios ou alheios, o tipo sisudo que
serve para aquilo sem que no entanto cative quem quer que seja no que remete
para fora desse cenário. Como te cativei? Essa pergunta já rodou o meu cérebro
milhões de vezes e nunca encontrei qualquer tipo de resposta satisfatória,
nenhuma hipótese inabalável, nenhuma síntese digna de verdadeiramente o ser.
Como? Considerado ao contrário, a resposta é tão óbvia que quase roça a
suspeita; mas não, é inapelavelmente verdadeira. Ganhaste a minha confiança em
segundos, obtiveste a minha simpatia sem que eu me questionasse: bastou-te
seres tu. Contudo… e eu? Como agradei o teu olhar, olhar esse que se ancora a uma
aguda inteligência e astúcia? Quando to pergunto, enleando ou em proposição
directa, sorris e piscas os olhos um pouco mais depressa durante uns escassos
segundos. Alguma vez me irás permitir saber? Isto é, saber dizendo-mo tu
frontalmente e em palavras que eu consiga interpretar.
O tempo correu depressa, ou
pareceu-me que sim. O nível de argumentação era muito bom, superior à média do
que já experenciei em vivências lá fora, nalgumas das capitais do conhecimento
da Europa. Dignificava a nossa condição, a nossa arte. Tinha ficado, por força
das circunstâncias que eu próprio construí através do meu atraso
despropositado, com a última posição. Nem por isso verguei ao peso da
responsabilidade. Ergui-me e sentei-me com convicção, não cedendo nem
exagerando no meu acto encenado. Tracei o meu sorriso profissional – gosto de o
chamar assim, pois deposito toda a fé no facto de que mais nenhum dos sorrisos
no meu lote de sorrisos é tão sui generis como este – e encarei todos de
frente, destemido como um soldado que oferece o peito ao chumbo pela sua
pátria, pelos seus valores, pelos seus ideais; e não tombei. Entretanto a tua
voz preenchia graciosa o ar daquele espaço. Escutava-te atentamente, falavas de
mim, de quem eu era – e sou – numas míseras quatro ou cinco frases não muito
alongadas. Estou a ser injusto, sei que procedeste de igual para com os que me
antecederam. Estávamos todos condicionados pelo tempo e não eras, nem podias
ser, excepção. Evitei ao máximo olhar-te, e fui bem sucedido, enquanto me
enquadravas no seio daquele cenário, não fosse a minha máscara dissipar-se e
trair sentimentos mútuos, esforcei-me portanto por transparecer uma
concentração real e credível face a todos os que assistiam. Iniciei e terminei
com total ausência de sobressaltos. Talvez até com uma certa ausência de mim.
Talvez, não. Indubitavelmente. O comportamento na presença daquele público em
particular obrigava a que eu, escondendo, renunciasse a uma parte de mim; fi-lo
sem pejo nem pudor.
Seguiu-se uma discussão que
guiaste e que pecou tão somente pela razão de ter sido excessivamente célere
quando se pedia por mais. Contudo, tínhamos um horário a cumprir. Se não fosse
cumprido, com o mínimo de rigor, seria o bastante para instalar a entropia na
ordem de trabalhos. Zelaste imaculadamente por esse cumprimento. No final, quando
proferiste o discurso conclusivo, ofereceste-me um mimo absolutamente
inesperado: citaste um trecho do meu trabalho, preterindo assim das palavras de
outros que pelo estatuto em que estão envoltos deveriam ter sido a tua escolha.
O meu sorriso profissional manteve-se fiel e as restantes expressões possíveis
do meu rosto ou do meu corpo alinharam, também elas, no mesmíssimo sentido. Só
bem mais tarde te soprei ao ouvido a minha gratidão. No corredor, já fora da
sala quadriculada, fui assomado por pessoas que queriam o meu e-mail, que não
tinham conseguido apanhar na íntegra durante a exposição, algumas falando num
português estrangeiro a Portugal. Não tive oportunidade para ficar surpreso,
logo me vi enfiado em conversas que se desenrolavam em pequenos grupos, onde
uns falavam e a maioria se limitava a escutar numa posição de espectador
manifestamente assumida. Enquanto também eu dava ao verbo, passaste por mim de
rasante e apertaste-me a mão esquerda que logo abandonaste com uma festa
delicada dos teus dedos. Tão rápida e tu tão senhora de ti que ninguém reparou:
só nós o sabíamos. Porém, e por mais que muita que fosse a vontade, não me
podia permitir a abandonar o local. Sabia igualmente que tinha outro encontro
marcado para logo, logo, cujo assunto era e é demasiado sério para se deixar ao
incerto abraço do acaso. Deixei de pensar até em ti, aquela ambiência absorvia-me
por completo e em absoluto. O cérebro trabalhava com um objectivo excluso, o
meu pensamento era redutor, imerso naquela realidade.
Abandonei o edifício cerca de
cinco horas mais tarde. Não te voltara a ver, o que até então não me
perturbava. Estava embriagado na minha própria euforia. Creio mesmo que terás
reparado e que se não nos encontrámos mais vezes durante essas cinco horas terá
sido inclusivamente por obra tua, evitando-me propositadamente. Transpus o
portão de saída saudando o segurança e só olhei, e de soslaio, uma única vez
para trás. Alguém chegava de táxi, deixando-o vago. Logo desisti de ir até à rotunda
da Boavista a pé como prometera fazer para compensar o meu desleixo com o
exercício físico, o que ocorre demasiadas vezes mesmo que de tal esteja
perfeitamente ciente. Fiz sinal ao condutor. Anuiu, podia entrar. Para o
aeroporto, se faz favor. O acelerador foi pisado e o veículo depressa se pôs a
galgar primeiro metros e depois quilómetros. Para o aeroporto, pensei para
comigo. Carregava a sensação de um vazio, à qual decidi não atribuir
importância. Desejava desesperadamente o avião do meu voo, regressar a Lisboa. Tudo
o mais era mero ruído residual em torno de mim. No check in perguntaram-me se
não viajava com bagagem que quisesse despachar para o porão do aparelho. Asseri
que não, agradecendo. Caminhei, todavia, inseguro para as portas de embarque.
Exactamente como aquando do percurso inverso, coisa extremamente rara, o aparelho
de detecção de metais optou por me dar tréguas e não buzinou à minha passagem.
Parei no número trinta e três e recostei-me nas desconfortáveis cadeiras de
aeroporto. Qualquer coisa mexia comigo, mas o pensamento teimava em manter-se
redutor, tal qual seis ou sete horas antes. A sensação de desconforto
transmutou-se de assomo para presença inquestionável, era demasiado premente.
Revi parte do trajecto. Detive-me nas memórias do check in. Qualquer coisa
sobre bagagem. Porra! Nem me despedi dela! Enfiei a cara nas mãos formatadas em
concha, esfreguei os cabelos com força e pertinácia. Merda, merda, merda.
Miolos de merda. Provi, contudo, de me acalmar: nada podia fazer agora que
alterasse o rumo dos acontecimentos. Mais uma vez, o que precisava era da
cabeça fria. Ergui-me de imediato num impulso, estaquei e reli os painéis de
embarque. O voo dela seria só no dia de amanhã e não estava ainda contemplado
na listagem. Quanto ao meu pouco restava, deixando-me com uma escassíssima
margem de manobra. Pela primeira vez desde que saíra daquela sala, não fazia a
menor ideia do que fazer, de como agir. Então agi da maneira em que,
literalmente, sou perito: não agindo.
Prestes a embarcar, sobravam três
ou quatro pessoas na linha, decidi-me a enviar uma sms. Três letras, um hífen,
mais duas letras, um ponto final. Mal o relatório de mensagem entregue surgiu
no visor, desliguei o telemóvel. Entrei no aparelho, dirigi-me ao meu assento,
confirmei se o i-pod estava desligado, coloquei o cinto de segurança, tudo com
um automatismo que noutras circunstâncias certamente despoletaria em mim
sentimentos de náusea e de horror. Meia-hora de viagem, após a qual um inferno
até ao dia seguinte ou, quiçá, até ao outro e ao outro e ao outro. Enterrei a
cabeça no encosto. Fechei os olhos e implorei ao meu cérebro que se desligasse
por uns minutos. Nem tinha dado conta do quanto estava exausto, intelectual e
fisicamente. Voltei a olhar o Porto, agora pela janela e noutra perspectiva.
Estava escuro, noite feita, e as luzes da metrópole da Invicta pouco mais
permitiam do que alguns vislumbres do seu tecido. Volvidos vinte minutos e
estaria a aterrar na Portela. Sem ti. Sem um beijo teu. No Porto ficara o que mais
importa, a bagagem que verdadeiramente merece consideração. Até amanhã,
sussurro bem baixinho e, desta feita, com o mais honesto e doce dos meus
sorrisos. Até amanhã…
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