domingo, 24 de novembro de 2013

ausências evidentes, take vi

Acordei bem cedo. Bom, pelo menos consideradas as minhas medidas e padrões. As contas que num ápice executei, que também nada tinham de difícil, diziam-me que dormira cerca de quatro horas, não mais. À chuva substituíra-se-lhe um sol tímido que só com púdica vergonha ousava espreitar, aqui e ali, por entre uma e outra nuvem. Levantara-me com a exacta roupa com que me deitara, umas calças de ganga que usara durante todo o dia anterior e pouquíssimo mais. O tronco desnudado ressentia-se da quebra de temperatura após ter retirado de cima de mim o edredão que me envolvera no sono. Talvez por isso tenha espirrado umas cinco vezes seguidas; ou terá antes sido pelas toneladas de pó, e dos seus aliados filamentos de cotão, que tomaram a princípio de cerco e no entretanto em conquista de facto os espaços do nosso quarto? Seja como for, também pela gelada chuva apanhada quando fumara na véspera o último cigarro. Sentia a garganta arranhada e dorida, os pulmões pesados, o pingo no nariz que teimosamente permanecia. Bom dia, atiro de suspenso para o ar num volume contido e com uma tonalidade sarcástica.

Liguei o computador, já com uma sweatshirt manhosa mas quentinha a cobrir os costados, para confirmar no site dos caminhos de ferro o que (me) tinhas transmitido. Gare do Oriente, 21h22, chegada do alfa pendular oriundo da Campanhã. Por que razão escolheras apear-te no Oriente? Saudosa de uma Expo que nunca chegaste a visitar? Como tantas vezes os teus motivos são insondáveis desisti das indagações remetendo a minha atenção para considerandos mais práticos. Como sempre, o apartamento devia mostrar-se impecavelmente apresentável quando por ele a dentro te trouxessem os teus seguros passos. Sem tirar nem pôr. Era um facto que se havia instalado na mente, por mais asquerosas e brejeiras que me parecessem as tarefas a executar. Baixei a tampa ao computador e palmilhei todos os recantos olhando atentamente em volta, sondando cada milímetro do nosso templo profano em busca de tudo o que parecesse deslocado; sabes, sou muito mais exigente quando só e te aguardo do que quando estamos juntos – talvez seja alguma forma ou estratégia de compensação, porém não estou certo. Certo tinha que muitas horas intervalavam o momento de reencontro e que, não tendo na agenda obrigação que me fizesse deslocar a outros lugares, vantagens da nossa profissão, as iria fazer valer.

Começara com o pé direito, já que não teria que me preocupar com loiça utilizada pois que a havia posto a lavar breves horas antes de me ter recolhido ao ninho que tão pouco se parece como tal na tua ausência. Arrastei o aspirador até ao quarto para fazer guerra a quantidades absurdas de cotão que pareciam brotar espontaneamente do soalho flutuante. Porém, quando estava quase a fazê-lo, abstive-me de ligar a máquina: parecia-me escandalosamente cedo para tamanho troar e embora não tenhamos calorosa relação com nenhum dos nossos vizinhos o respeito mútuo tem sido uma constante, coisa de gente que se conta e diz civilizada, seja lá o que se pretende transmitir com o que parece uma patranha preconcebida e mobilizadora de comportamentos padrão. Depressa me deparei com opções alternativas, como por exemplo recolher a roupa amontoada que havia semeado pela habitação durante este período da tua não presença física. Era mais sensato começar por aí, pelos pares de calças displicentemente abandonados no chão junto à cama, coisa habitual, e defronte do sofá da nossa sala, pelas camisas e camisolas enrodilhadas que preenchiam vazios nossos pelas cadeiras da mesa de jantar, nos bancos de cozinha, aos pés da cama e só Deus sabe mais onde; dos boxers que faziam fila tanto no quarto de banho como por debaixo daquele estrado e colchão aos quais, juntos, chamávamos cama. Apeteceu-me enfiar toda esta maralha anómica na máquina da roupa e lavá-la a frio, mas logo constatei a patetice dessa espécie de disparate. Por que razão danada nunca aprendi a funcionar com esse aparelho de tambor? Não sei. Facto é que não iria passar a sabê-lo agora. Num mundo onde tudo, quase tudo, incluindo pessoas, é tratado de modo descartável observei que seria igualmente lógico que também um dia todo o vestiário seria tratado da mesma forma. Sorri. Sabia-me estar a ser tolo exactamente por não saber por onde começar a labuta para o embelezamento artificial e aparente do apartamento. Tudo o que me bastava, registei, eras tu. Tu, como se a tua mera presença pudesse reconduzir a vida quotidiana ao seu regular funcionamento. Disparate. Contudo, disparate que me envolvia na melhor sensação de conforto e de continuado aconchego. Os homens são loucos. E as mulheres, as mulheres idem, se bem que de longe mais belas e airosas na sua entrópica loucura; especialmente tu, que manténs os meus neurónios num arraial de sinapses em catadupa ainda que tantas vezes sem um sentido que se possa evocar como racional ou disposto por atributos dessa coisa a que denominamos razão sem saber muito ao certo nem a profundidade nem as peculiaridades do seu significado. Com vocês estamos perdidos. Sem, somos como um quadro de traços desalinhados e inacabado porque, sem apelo, arrasados pela incompletude da nossa condição. Regressa-me ao rosto o sorriso. Não estava para travar conversas dessa dimensão comigo, para mais com a manhã ainda menina. Sabes, sou como os morcegos: funciono em pleno nas horas de escuridão, pela noite dentro. Sabes, eu sei. Que estarias tu agora a fazer na tua cidade? Desliguei a ficha, há tanto por fazer.

Abri o portátil. Mais uma vez. Talvez conseguisse comer algumas horas se eventualmente me embrenhasse em textos do meu trabalho. Olhei-os da mesma forma que um boi contempla um palácio, sem os entender e incapaz de os apreciar. Surgiam-me aos olhos tão-somente letras somadas e baralhadas, enfim, dispostas por uma qualquer lógica que agora me escapava de todo. Já tu és bem mais pragmática do que eu. Num ápice decifrarias sem qualquer dificuldade o código instituído pelas palavras e frases para as quais olhava alheado e sem interesse. Também tu és muito menos resistente a funcionar em sintonia com as ditas horas normais de trabalho, prefere-las. Eu, pelo inverso, não me entendo nessa lógica e sempre preferi delinear objectivos em detrimento de uma esquematização rígida e operacional de como os alcançar, um dos aspectos em que sou indubitavelmente mais flexível do que tu, tanto para melhor como para pior. Chega. Desisti. Para mais tarde retomar. E aí sim, provido do pleno das minhas capacidades intelectuais. Eras tu o centro do meu universo; melhor, era-lo todo. Seriam risíveis empreitadas que exigissem outra coisa que não apenas a mecânica imbuída no meu esquema mental. O meu pensamento estava exclusivamente direccionado para o teu abraço, para os beijos com que ansiosamente prendaríamos os nossos lábios, os nossos rostos, os nossos pescoços que exalariam os nossos cheiros de um para o outro, tudo o mais que ocorresse entretanto vergado à nossa irredutível vontade, actos que antecipava com a maior vontade e impaciência do mundo. Como te amo, miúda. A distância faz-me mal, é como uma gripe que assola o espírito, por muito tonta que te pareça a metáfora.

Ainda assim consegui perder, deveria dizer ganhar, uma hora nestes meus devaneios. Já não me parecia despropositado utilizar o aspirador, embora talvez fosse ainda demasiado cedo. Poderia muito bem começar por limpar o pó que constatava abusivamente acumulado no móvel que sustentava a televisão, uma foto dos dois e um solitário vazio; deveria preenchê-lo, antes da tua chegada, com uma das tuas flores predilectas, talvez uma rosa rosa. Perscrutei o pó com um olhar mais sério. Que gaita, nunca sei o que fazer primeiro: limpar o pó ou aspirar. Quantas vezes já mo disseste? Certamente tantas quantas as que esqueci. Não é por mal, ternura. Às vezes, ou não tão pouco como isso, sou um bocado avoado. Talvez porque continua a deleitar-me escutar-te, seja lá sobre o que for desde que… o desde que fica por ora em trânsito, por terminar: traz à memória coisas pesadas, material inverso ao daquele de que são feitos os sonhos. Há sempre um desde que, um porquê, um mas que assombra a vivência de todo o ser humano. Deixemo-los por agora, perdidos num qualquer recanto obscuro e quase inacessível no âmago da massa cinzenta; ou branca, sei lá, escassos são os meus saberes de neurologia e das neurociências em geral, que é o mesmo que afirmar, na prática, nada. 

A imagem da rosa rosa tomou-me de tão vivida, pela necessidade que antecipei impossível de incumprir, que de imediato me imaginei em incursão pela que melhor te fizesse jus. Cumpria a mundana tarefa de ir aprontando a casa para o teu regresso enquanto intimamente indagava quais os locais onde podia obter essa formosa rosa ou ainda se deveria adquirir duas ao invés de uma apenas. Onde obtê-la não era coisa que me criasse grandes obstáculos ou dúvidas, já o quantas falava-me de outra forma. Projectava na mente a imagem do solitário albergando uma tanto como duas, incapaz de me decidir de facto. Diz o bom senso que a nomenclatura nos oferece resposta imediata: solitário, portanto uma só flor. Todavia, a nossa condição, o vivermos as nossas vidas no seio de um regime de comunhão, abria como que obrigatoriamente portas a outra e não tão ortodoxa possibilidade, a saber às tais duas rosas que representariam juntas por força de metáfora as nossas duas pessoas bem como a natureza da nossa união. À guisa deste pensar o trabalho investido em colocar o apartamento num brinco tornou-se bem mais fácil e menos aborrecido, sendo que quando o terminei o espanto assomou-se já que não me esperava tão lesto e eficiente. De facto, isto do tempo psicológico tem muito que se lhe diga. Gostava inclusivamente de lhe dedicar uma atenção mais devida, a este assunto, porém desviava-se por demais das tarefas a que era chamado a executar na lide das actividades da esfera profissional. Paciência, talvez quando puder usufruir de algum tempo extra livre o venha a fazer, pensei mesmo sabendo que tal não viria realmente a suceder por motivos que não importa agora elencar. Enfim, dei-me por satisfeito por a casa estar finalmente própria para te acolher, coisa suficiente para me provocar um satisfeito sorriso que fez esquecer o cansaço físico devido ao aparato que fora conduzindo por mais de um par de horas, bastante mais.

O dia começava a esconder o seu rosto, aos poucos cedendo lugar ao soturno manto negro da noite que tanto estimo. Embora esmiuçasse os prós e contras de uma ou duas rosas rosa a preencher aquele esguio solitário, não me conseguia decidir com vincada certeza. Precisava, o que era mais que certo, era de sair de casa o quanto antes se pretendia adquirir os ditos complementos ornamentais. Seriam as flores o complemento ou ao invés sê-lo-ia o objecto que as albergaria? Mente vadia, o tempo escasseia e ainda assim te pões aos devaneios tontos como se tivesses em mãos todo o tempo do mundo. Urgia, isso sim, ir buscar as flores antes de ir buscar o éden que elas, agora sim, complementariam: tu, miúda. Peguei as chaves, de casa e do carro, e bati a porta já com um destino delineado célere pelos meus neurónios. Que se lixe, o elevador subia ao meu encontro, duas.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

domingo, 4 de agosto de 2013

Da pobre à nobre escolha ou ser-se fiel ao eu

Há-o essencial e acessório. Nem sempre os distinguimos. Não porque não possamos. Simplesmente porque nos é conveniente baralhar um com o outro. Sabemos. Desejo o acessório. Vivo, todavia, para o essencial. É evidente que não sou imune ao jogo de baralhação. Contudo, como sustido, bem sabemos separar águas. Está-nos no sangue. Deixemo-nos da miserável desculpa, tão oportunista quanto nós lhe somos tolerantes. Saber, sabemos sempre. Basta de nós observar aquilo que nos é reflexo. Bem simples. Teimamos, atreitos à fome do de que é fácil, em complicar. Tu sabes. Desculpa...

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

incorrer-se em dúvida certeira

Posso parar de devanear ou devo continuar com todos estes, tantos, disparates que na realidade só fazem, todos eles, sentido?

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

sábado, 27 de julho de 2013

dos projectos

A um mês de aterrar em Turim. A expectativa é enorme. A paciência, essa, vai-se mantendo bem saudável. Já só um mês...

quarta-feira, 17 de julho de 2013

sábado, 22 de junho de 2013

quinta-feira, 13 de junho de 2013

quarta-feira, 12 de junho de 2013

terça-feira, 4 de junho de 2013

pé ante pé... att: frágil

Numa correria. Não sei viver de outra forma.

shuffle mode

Lavar os dentes às sete da manhã com os headphones do i-pod ainda no ouvido por noite não dormida e prestes a ir para o labor é demasiado metrossexual para mim.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

do diagnóstico, dos distúrbios e aos societais rótulos estigmatizantes

Com a neura (há que fazer jus à nomenclatura aqui do cantinho)  toda para pôr as mãos em cima desta preciosidade que o é a nova edição do manual:





ps: há gente que não tem vida, já sei. (pré-ordem para a Europa: 130,00€, no sítio oficial)

terça-feira, 28 de maio de 2013

breve (des)encanto da idade

Já soube escrever. Agora, nos dias do presente, limito-me a arrastar dedos por teclas. 

sábado, 27 de abril de 2013

perché sì

Final de Agosto em Turim. Lazer e trabalho. Nos tempos que correm é amiúde mais ajuizado juntar ambos. Ainda falta, demora; até lá.
Escuso-me a questionar-te se vais. Era bom, era mau. Há quanto ando a evitar um clash profissional? Receio-o por mim, por ti, por nós? Por tudo isso. Porque somos implacáveis, ambos, quando imersos na nossa subcultura do métier. Coadunaríamos as distintas esferas, a pública e a privada, com a devida eloquência? Creio que só o fizemos uma vez; não ficou qualquer vontade para um remake. Se fores... se fores, é bem ignaro sustentá-lo mas enfim, talvez por esta vez fosse mais prudente cada um no seu hotel, no seu quarto, suprimindo quanto possível o encontro. Repartíamos Torino em quartieri previamente balizados: uma para mim, outra Torino para ti; a intersecção profissional seria espaço-tempo e território neutros. Quero-nos paralelos. Temo que se cairmos na fácil tentação destes momentos para a competição... destruímo-nos, não saberíamos parar e somos feitos de uma argamassa excessivamente inflexível e arrogante nalguns domínios muito próprios. Fracos, feios, impiedosos porque não sabemos perder; já soube, todavia não há armistício que possa garantir: sabes, cogito em desabafo, as pessoas mudam. Mudam e permanecem mais iguais, mais fieis a elas próprias. Noutras calendas silenciar-me-ia com um sorriso a vincar o rosto e deixava-te mais às tuas hostilidades afundar a minha frota; ou que assim o julgasses, fosse como fosse - porém, não é mais assim. Mudamos. E firmamo-nos mais iguais. Não vás...

segunda-feira, 11 de março de 2013

terça-feira, 5 de março de 2013

no excuses, they say

- Já escrevias.
- Tenho que voltar à escola.


"My reflection, dirty mirror
There's no connection to myself
I'm your lover, I'm your zero
I'm the face in your dreams of glass
So save your prayers
For when we're really gonna need'em
Throw out your cares and fly
Wanna go for a ride?

She's the one for me
She's all I really need
Cause she's the one for me
Emptiness is loneliness, and loneliness is cleanliness
And cleanliness is godliness, and god is empty just like me
Intoxicated with the madness, I'm in love with my sadness
Bullshit fakers, enchanted kingdoms
The fashion victims chew their charcoal teeth
I never let on, that I was on a sinking ship
I never let on that I was down
You blame yourself, for what you can't ignore
You blame yourself for wanting more
She's the one for me
She's all I really need
She's the one for me
She's my one and only
"

'zero', smashing pumpkins

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ausências evidentes, take v

A chuva precipita-se copiosamente sobre a cidade. Há muito que fazia falta. Não são somente os territórios aráveis, agrários e rurais que carecem da sua bênção. É essencial para a urbe, acometida por poeiras e outros detritos acumulados durante o período em que o céu não chora, lavando o seu tecido de ponta a ponta incluindo os seus interstícios (mais imundos).

Já comi, já pus a loiça na máquina e só não alimentei o cão porque não o temos. Fazia parte das nossas intenções, recordas-te? Algo protelado já que nos demorados concílios em que debatíamos que tipo de cão para, nunca chegáramos a consenso. Porém, seja-se apologista da verdade, o certo é que a pressa quanto ao amigo canino não falava assim tão alto. Temos tempo, concordávamos provisoriamente até que chegasse a concordância final de escolha. Eu cá teria preferido um gato, hipótese que de imediato descartaste. O cão, então. Largo a pastilha na máquina e sacudo das mãos, directo para o chão, o pó remanescente que a elas se colora sem ter sido convidado para permanecer. Inspiro pelo nariz, incomodado. Constipei-me, raios partam estas bruscas mudanças meteorológicas. Nem cão nem gato. Eu e a máquina de lavar loiça, cujo labor inicio mal encerro a portinhola. Rasgo uma folha de papel do rolo de cozinha e assoo o nariz, todavia sem que isso contribua para reparar o meu incómodo. Encolho os ombros, paciência – o que hei-de fazer? Safo-me, contudo, do teu discurso de censura: regressas amanhã e não irás perceber o meu gesto que deixei de executar à tua frente por ter percebido – entenda-se, após teres-me feito perceber sem margem de apelo a dúvida – que te repudia e enoja. Há cá uma diferença entre lenços de papel e o papel dos rolos de cozinha. Todavia, nem pretendo reentrar nessa argumentação que foste peremptória, talvez até imperativa, muito para além do habitual. Na minha rendição, concedo-te a atribuição simbólica que distribuímos pelos objectos: se é rolo de cozinha, então o seu papel remete para afazeres adstritos a práticas que remontam da sua adjectivação; se é papel em que no rótulo vem impressa a palavra lenços, então o seu uso referencia-se também mas não só à limpeza não da cozinha mas do sótão atafulhado de agentes bacterianos que muitas vezes o nariz, ou o seu interior, que é mais correcto, o é. Ok, quem sou eu para pretender boicotar o teu jogo de papéis? Sim, já sei que sei mais do que isso, que mais do que um dever é minha obrigação: contudo, não poderia eu por uma vez separar o trabalho da esfera pessoal, impondo-lhe uma clivagem tal que pudesse ser, por assim dizer, duas pessoas? Levo o recorte usado do rolo para a casa de banho e submeto-o às torturas do turbilhão de água evacuado pelo autoclismo. Porque perco tempo e queimo paciência com estes devaneios inúteis? Afinal a tua presença só amanhã se materializará pela casa. E não saberás, ai pois não, de nada pela minha boca que se firmará mais firme que a concha de um bivalve. Não por cobardia, antes para evitar aborrecimentos inúteis. Quer a mim, quer a ti. Regressas. Quero o confortável silêncio de um beijo unido por abraço há tanto tempo desejado. Discutir é cenário que não quero sequer imaginar para amanhã. Primeiro os mimos, só a seguir a trivialidade no nosso quotidiano.

Onde é que eu ia? No cão? Não, já sei: a chuva e a cidade. Hoje o verbo sai-me pouco fluído, de certo por défices graves no emaranhado que amiúde enleia a imaginação. Não quero saber, que se lixe. A verdade é que penso numa coisa e numa apenas. A minha mente vive já no dia de amanhã, debruçada e deleitada nos prazeres sensitivos que o do teu colo oferece em dádiva desinteressada que não exige retribuição. Entretanto o céu chora, a cidade banha-se deliciada. Chove no teu Porto? Sei que sim, embora os meus olhos não vejam.

Se me esqueci das dúvidas que assomaram à mente? É evidente que não. Sentença imediata desprovida de hesitação. Não são fortuitas. Silencio-as, apenas. Faço de miúdo e de miúdo faço de conta. Faço de conta que não existem. Por ora. São demónios que não consigo afastar sem lhes aplicar devida exorcização. Sinto-os, ainda que silenciosos, a morderem implacavelmente pedaços de alma. Pedaços bem grandes, impossíveis de ignorar. Não mata, mas mói – assevera a sapiência popular. Corroboro: como o inverso? – não há como… antes houvesse. Onde param as nossas âncoras que até hoje se mantinham inamovíveis e aguerridamente agarradas à certeza? Enferrujaram. Sim, decerto foram enferrujando. Será a corrosão que subjaz irremediável? Conheço a resposta, bem demais para a escarrapachar numa palavra. Conduz-me para outro universo, para o universo da dor emocional. Que criaturas desbragadas, os meus demónios. Feias.

Coloco as severas dúvidas em pausa. Amanhã. Para cima de um mês que os meus olhos não encontram os teus. Aquelas encenações em que, agarrados aos nossos portáteis, nos encontrávamos via espaço virtual para mim não contam. Não contam para nada; ou quase, já que alguma certeza se insinua. Pouco importa. Centro novamente a atenção no dia de amanhã, dia em que como um cão portarei de vigia à porta até que por ela adentro caminhes. Devaneio, se calhar já temos o cão – só ainda não tinha dado conta disso. Tolo, escarneço de mim com raiva a aflorar-se na voz dos meus pensamentos. Recupero imagens que ainda estão por vir, imagino-te a afagares-me o cabelo e a despenteá-lo com as tuas mãos. Regressa o cenário do cão, só me falta a língua de fora e rebolar-me pelo chão. Constrito a tolerância que ainda havia tido comigo: tolo, não; palhaço – mas alguma vez sou algum cão, assiro ferrenho com palavras das mais bem feias a dar o mote a uma eventual interrogação. Busco e rebusco nos bolsos das calças pelo maço de cigarros. O nervoso, esse, miudinho. Tiro o primeiro, partido. Arremesso-o violentamente sem preocupações com a direcção. Já a ficar esganado, sai o segundo. Torto, ainda assim intacto de ponta a ponta. Endireito-o com os dedos enquanto o encaminho para os lábios e abro, abrupto, uma das janelas da cozinha. A chama baila nervosa no ar, tal qual eu, até que enfim encontra o seu destino e cumpre a sua vontade. Retenho o fumo nos pulmões o máximo que posso, como que a punir-me em castigo por uma falta que afinal só eu conhecia. Cão… Entretanto a água que se prostrava do céu ensopava-me até aos ossos. De que me importava? Cão… Cão é o… O fumo subia ao encontro das nuvens mijonas. E eu, eu voltava a descer ao meu inferno, por descuido e não intencionalmente; quando assim estamos predispostos a nossa mente é capaz das piores peripécias, bem o sei.

Devia estar feliz, não é? Questão a que não respondi enquanto o episódio de birra se esbatia da centralidade das minhas cogitações. Ao invés procurei de novo o papel de cozinha, não para o nariz e sim para enxugar as mãos que pingavam os quadriculados desenhos do chão. Na realidade, esquecera-me por absoluto da constipação contraída e que se afirmava mais séria com uma pontinha de temperatura à mistura. Desapertei uns quantos botões da camisa e arranquei-a do corpo juntamente com a camisola ensopada que se lhe encimava. Tudo de uma vez. Abandonei as duas peças de roupa amontoadas sem qualquer cuidado em cima de um banco e fui tentar remover do tronco a restante água que se entranhara pelos tecidos. Com a toalha de banho. As questões preconcebidas de etiqueta tinham sido irrevogavelmente suspensas. O imediato era agora onde eu vivia sem questionar. Finas linhas de água, ou assim as percepcionava, escorriam para o rosto. Dei conta que também o cabelo se encharcara muito além da sua capacidade de retenção. Esfreguei-o desabridamente sem pronunciar uma palavra, nem por dentro. Quando me vi reflectido no espelho foi-me custoso reconhecer-me. É assim uma pessoa? Aquela imagem retribuída não parecia de gente. Reflectia-me quebrado e destituído da minha dignidade humana. Ao vê-la, impeli-me inconscientemente a estacar todo e qualquer movimento. Não, não podia ser assim. Aquele não era eu. Não podia ser. Impossível. Agastado, obriguei-me a voltar a pensar. De que servem os neurónios se não se usam? Retomei a certeza de ser um ser; um ser pensante e dotado de razão e discernimento, não somente moldado por enxurradas de emoções desenfreadas. Notei que paulatinamente o calor do sopro da vida reaparecia com evidente consciência. Devo dizer, no caso, o frio. Sentia-me gelado, contaminado por um frio que entranhava cada extremidade nervosa. Porém, do mal o menos. Encontrava-me vivo e bem vivo; e ciente, coisa que me escapara sem que por isso desse conta. Por fim a imagem sorriu-me. Foi o suficiente. De facto, devia estar feliz. A verdade era essa sem que conseguisse encontrar-lhe qualquer rasto de impureza. No fundo sabia-o. Pressentia que assim era até às raízes da minha alma. Sosseguei. Os espectáculos que enceno na tua ausência… que dirias, se me visses assim? Na verdade, não quero saber. Na verdade, não aconteceriam na tua presença. Se as pessoas têm segredos, mesmo aquelas que mais parcelas da sua vida comungam? Têm. Este é um deles, um dos quais não estou disposto a abrir mão – desculpa.

No nosso quarto olhei as tuas coisas e os teus lugares; e mais tudo aquilo que não é nem de um nem do outro, mas ao invés comum e pertença de ambos. Puxei por uma fotografia nossa, bem junto à televisão que tão poucas vezes ligamos, instantâneo do real capturado e enquadrado numa moldura pela qual não tenho a mínima simpatia; tu gostas dela, da moldura, e eu, por isso, tolero-a. Importava-me apenas o instantâneo capturado e a ternura que parecia querer transbordar-lhe pelos quatro cantos. Fixei-a intensamente, com o olhar e com as mãos. Parecia querer tocar naqueles dois seres retratados, de verdade e não no papel. Um instantâneo é exactamente o que é, uma forma rebuscada que pretende agrilhoar uma realidade que já foi e que é irrepetível. Óbvio que os seus esforços, não sendo inconsequentes, se demonstram amplamente em vão. Dois rostos colados, sorrisos tão abertos quanto espontâneos, dois seres de tamanha forma embrenhados na sua felicidade que se esquecem que o ademais do mundo também existe. Felicidade. Não deveria eu estar feliz? Amanhã o rosto em falta iria reparar uma espécie de realidade suspensa, voltaríamos a colá-los refazendo o completo da figura. Devia estar. Porque hesito? Reponho a foto no sítio. Será de facto aquele o seu sítio? Ou de outra forma, terá sítio para além daquele que se apropriou quando ocorreu em tempo presente? Esqueço o devaneio, não estou disposto para mais ventanias por entre os miolos. Debruço-me nessa cama tão enorme sem ti. Acabo por nela me estirar, encerrando os olhos em sintonia com um suspiro profundo. Quero adormecer. Quero o amanhã. Quero-o, com todo o desespero das minhas forças. Merdas à parte, sabes quanto te amo miúda? Sabes, sim. E mesmo com a distância a entrepor-se sinto o teu. Falta pouco, tão poucochinho. Decidido arranco o edredão da amálgama de roupa de uma cama por fazer, espraio-o sobre o meu corpo. Permito que a tranquilidade em mim penetre. Penso qualquer coisa, coisas, sei lá. Todo o desequilíbrio é acossado e deposto. Sinto-me em paz. Comigo. 

Se sou feliz, ternura? Sou.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

cansaço que faz esquecer

E quando a cidade adormecer, plácida e serena, também eu me recolherei no aconchego do seu colo.




"La ville s'endormait
Et j'en oublie le nom
Sur le fleuve en amont
Un coin de ciel brûlait
La ville s'endormait
Et j'en oublie le nom
Et la nuit peu à peu
Et le temps arrêté
Et mon cheval boueux
Et mon corps fatigué
Et la nuit bleu à bleu
Et l'eau d'une fontaine
Et quelques cris de haine
Versés par quelques vieux
Sur de plus vieilles qu'eux
Dont le corps s'ensommeille

(refrain)

Et mon cheval qui boit
Et moi qui le regarde
Et ma soif qui prend garde
Qu'elle ne se voit pas
Et la fontaine chante
Et la fatigue plante
Son couteau dans mes reins
Et je fais celui-là
Qui est son souverain
On m'attend quelque part
Comme on attend le roi
Mais on ne m'attend point
Je sais, depuis déjà
Que l'on meurt de hasard
En allongeant le pas

(refrain)

Il est vrai que parfois près du soir
Les oiseaux ressemblent à des vagues
Et les vagues aux oiseaux
Et les hommes aux rires
Et les rires aux sanglots
Il est vrai que souvent
La mer se désenchante
Je veux dire en cela
Qu'elle chante
D'autres chants
Que ceux que la mer chante
Dans les livres d'enfants
Mais les femmes toujours
Ne ressemblent qu'aux femmes
Et d'entre elles les connes
Ne ressemblent qu'aux connes
Et je ne suis pas bien sûr
Comme chante un certain
Qu'elles soient l'avenir de l'homme
(refrain)
Et vous êtes passée
Demoiselle inconnue
A deux doigts d'être nue
Sous le lin qui dansait"


'la ville s'endormait', jacques brel

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

para ontem

Há muito que por aqui não escrevo. Demasiado, sem dúvida. Aliás, há muito que não escrevo de todo, se exceptuar o registo técnico. Não pode ser. Para breve tenho que postar o ausências evidentes v, terminada que está a sua redacção sei lá desde quando; e mais qualquer coisita de novo, que isso também se quer e deseja muito. Da forma e do conteúdo nenhumas alterações de monta: o neurose é o que é e continuará a sê-lo; tal como eu.