Amar o impossível. Nunca se queira menos que isso.
sábado, 24 de novembro de 2012
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
colaterais
Irritadiço e a descarregar a frustração em colegas que nada têm a ver. Mesmo que de forma encapotada e não mal-disposta é coisa que não se faz. Sabes mais do que isso. Shame on you mr. pma.
terça-feira, 16 de outubro de 2012
ausências evidentes, take iv
Optaste por prolongar a tua estadia pelas terras da Invicta. Não te condeno. Nem posso, mesmo que fosse essa a fome da minha vontade. O meu vínculo profissional exige a minha permanência continuada na metrópole de Lisboa, o teu na cidade do Porto. Actualmente, e até num futuro a médio prazo, nada há que possamos fazer para alterar as circunstâncias que agora guiam os nossos compromissos relativos à esfera profissional. Antes de nos conhecermos melhor sabíamo-lo, estávamos completamente esclarecidos quanto aos trajectos que não podíamos evitar, anteriores a nós mesmos. O tempo vai passando, quantas vezes sem dele darmos conta, e vai para lá de um mês que não somos postos na presença um do outro. A uma dúvida que se havia assomado à mente, e à qual não quero escapar pelo menos a tentativa de obter melhor compreensão, adiciona-se presentemente outra: terá sido acertada a opção de arrendarmos conjuntamente habitação em Lisboa? Alturas houve em que não hesitaria em responder, com a flexão na afirmativa. Hoje em dia, porém, a convicção esbateu-se, a dúvida instala-se mais confortável nos seus senãos, os porquês surgem menos espaçados e as respostas aos mesmos tendem a ser esguias quando não completamente inexistentes. Vicissitudes dos tempos modernos; ou melhor, da nossa modernidade. A certeza e a previsibilidade são substituídas pelo risco e pela multiplicidade da acção individual solipsista. Não poderemos ser nós dois, única e exclusivamente, a mudar o mundo – aliás, demasiadas são as vezes em que é este que nos altera e nem sempre no sentido manifestamente desejado pelas nossas duas individualidades.
Compreendo perfeitamente a tua decisão e, de um certo modo, também a suporto. Creio que menos não esperarias de mim, nem eu de ti. Sei bem que não abandonaria Lisboa como residência no espaço de tempo do imediato. Tenho as minhas razões, as minhas boas razões; exactamente as mesmíssimas que a ti atribuo com as tuas ausências rumo ao Porto que a pouco e pouco vão sendo cada vez mais extensas. Presumo, num tom pessimista para o tal nós, que não tardará a que te mudes de armas e bagagens. Presunção pouco simpática, como é evidente, já que é mais do que garantido que não me poderei permitir acompanhar-te. Bem sei que estou a tentar não explicitar o inevitável, contudo não sei por quanto tempo eu e tu, ou nós, nos consigamos conter. Se fosse um jogo diria que estávamos perante uma situação em que nenhum cenário dos possíveis é vencedor ou capaz de o ser. O que é mais grave é que estou a habituar-me a viver o meu quotidiano apartado de ti, inclusive nas mais pequenas coisas que amiúde me te traziam à memória. Jantar, um ritual que fazíamos questão que acontecesse a dois, passou a ser normal suceder apenas entre mim e o televisor, isto quando não levo o prato para o quarto e me fixo no ecrã do portátil. Quebrou-se, ou está-se a quebrar, o hábito construído e constituído de nos alimentarmos enquanto nos entrosávamos em amena cavaqueira ignorando por completo os sons emitidos pelo aparelho de televisão invariavelmente ligado. O elo, o nosso elo, parece querer escorregar por entre a impossibilidade que se entrepõe e impõe entre as nossas vontades. Não me é fácil nem agradável admiti-lo, mas o vivido fala por si e, como se diz, contra factos não há argumentos. O amor devia ser mais forte do que tudo. Sê-lo-á?...
Hoje, sábado, declinei o convite semanalmente reiterado para ir tomar café com alguns bons amigos de longa data. O meu círculo social já não é nada de extraordinário, pelo que não é com leveza que pretiro destes momentos especialmente para me dedicar a práticas introspectivas que me conduzem, inapelavelmente nos últimos tempos, à interrogação sobre o nós. Porém foi exactamente esse o leitmotiv subjacente à recusa em ir socializar com a rapaziada. Mais do que convicto, estou certo disso. Almocei um hambúrguer manhoso numa dessas casas que se encontram praticamente ao dobrar de cada esquina e voltei sem mais embargos para casa. Queria-me só ou comigo e as paredes, que é dizer o mesmo. Estirei-me na cama mal me vi livre dos ténis; sem atacadores, até estas criaturas dispensam os laços. Bem a meio da cama, a observar o tecto, procurei colocar-me o mais confortável possível. As mãos atrás da cabeça e as pernas semi-flectidas. Por instantes tal foi a torpe que me enleou que julguei ir cair no sono. Contudo, esforcei-me para me manter acordado. Tinha vários projectos introspectivos em mente aos quais me queria dedicar e não estava disposto a protelá-los. Embora não tenha fugido na íntegra, lá espantei o sono que se aproximara sorrateiramente e matreiro. Pus na boca um kompensan, coisa de que me faço acompanhar religiosamente, a fim de mitigar o desarranjo então surgido no estômago – refluxo esofágico, diz-me o médico. Sabia que havia um nós. Todavia, haveria um projecto para esse nós? Algo de concreto, sustentável? Passei o comprimido de um lado da boca para o outro, revelando o meu nervoso miudinho e a tentativa de apelar aos meus neurónios que laborassem em conformidade com as exigências da situação que jamais me parecera tão delicada quanto agora. Atirei uma mão para o meu lado da cama, mas ao invés da habitual garrafa de água apenas encontrei o vazio; desisti. Afinal, talvez tenha sido burlado por artes de labuta do inconsciente, nem sequer tinha sede. Não de água, pelo menos. Sede, sim. Mas de respostas, por mais hipotéticas e provisórias que elas fossem. Respostas… Quem não as quer? Certos estão os que asserem ser mais fácil dizê-lo do que fazê-lo; já sei que é uma verdade à la Palice, contudo nem por isso menos acertada.
O ruído dos automóveis que circulavam avidamente pela rua incomodava-me, o que, diga-se, é qualquer coisa de bastante raro. Sempre fui um citadino, um nado da metrópole: aqui e ali tenho asseverado que Lisboa é a minha segunda mãe. Coisa tola. Ou nem por isso. Mas, de facto, não é tema para agora – debate para outras núpcias. Por que motivo danado fujo sempre com o rabo à seringa quando farejo assunto que suspeito ser desagradável? A minha capacidade de alienação é extraordinária quando os ventos não me sopram a favor; este é um desses casos, provavelmente dos mais paradigmáticos para exemplificar essa mencionada capacidade perante a contrariedade, a impotência, adversidades de monta, enfim, perante a frustração. Saí da postura confortável em que na cama me encontrava. Ponderei, errando pelo corredor único da casa, se não faria melhor em juntar-me àquele turbilhão de veículos em movimento, percorrendo por meu turno o tecido betuminoso que constituí boa parte da derme da minha amada Lisboa. Após alguma indecisão, subtraí essa hipótese do leque de possibilidades. Afinal pretendia estar comigo e por muito que goste de papar quilómetros enquanto me perco no profundo de mim mesmo esta não me pareceu opção acertada, não para saciar os meus anseios presentes – estava, definitivamente, fora de questão. Ao invés, seria de maior tino permanecer por casa. Acenei que sim, como que corroborando a minha própria sentença. Acabei por me sentar no sofá da sala, não sem que antes me tivesse ajoelhado defronte do singelo bar de madeira para dele retirar um copo baixo e bojudo que enchi com uma medida de três dedos de líquido de um dos meus whiskeys predilectos; dispensei as duas pedras de gelo do costume. Quebrei igualmente a nossa regra de não fumar na sala, coisa que só muito extraordinariamente acontece como quando reunimos alguns amigos, dos meus e dos teus, para uma jantarada que se prolonga noite afora até ao despontar da madrugada – ainda assim, nunca era eu a acender o primeiro cigarro. Levei o copo aos lábios a provar aquela bebida que ainda é mais quente quando desprovida das minhas habituais duas pedras. Poisei-o no braço do sofá para ir apressadamente ao escritório buscar o cinzeiro, creio que o único que temos no nosso cantinho – quanto aos mencionados jantares vários eram os apetrechos que, ao improviso, faziam as vezes de um cinzeiro. Troquei de posições copo e cinzeiro, passando um para a mão e o outro para o braço do sofá. Abri uma frincha nas janelas e voltei a sentar-me, já com o cigarro a fumegar na mão oposta àquela que segurava o copo servido. Fiz com que o mesmo, o copo, encontrasse mais uma vez os meus lábios. Porém, desta feita, aproveitei para uma golada mais profunda, acto que deixou apenas um risco breve de tonalidade âmbar a baloiçar no fundo do copo. Apercebi-me do erro da minha precipitação ao sentir o ardor provocado pelo líquido que atravessava o caminho que o depositaria no estômago, estômago que terá ficado danado comigo vista a forma violenta e célere como desagradavelmente se abrasou. Precisava de ter mais calma, pois não pretendia ficar ébrio o que implicaria, para mais contra a minha vontade, perturbar o regular funcionamento do sistema neuronal. Com o remoto liguei o leitor de dvd que por obra do acaso ainda continha em si o disco de música que lhe introduzira no dia em que havias dito regressar – o que, com facilidade se constata, não sucedeu. O seu impacto para comigo foi no mínimo ambivalente: se por um lado o álbum se encontra no lote dos meus musts, por outro cristalizava em mim a tua ausência já que habitualmente quando tocava, ainda que sem déssemos conta disso nessas alturas, o escutávamos em comunhão. Com um sorriso triste a ponderar sobre a constatação bipolar soergui-me e verti da garrafa para o copo um pouco mais de whiskey, o suficiente para que tomasse a aparência original de quando me servira. Voltei a molhar os lábios, tenuemente, precavido dos efeitos não desejados por trago exacerbado. Serena, a tarde ainda só vai a meio. Escuso precipitar-me esvaziando apenas num breve espaço de um par de horas uma garrafa de quase quarenta graus de álcool que ainda mal encetada tinha sido.
À medida que a tarde se ia fazendo noite outro ocaso acontecia em simultâneo no meu cérebro fervilhante – a saber, o nosso; ou assim o via, sem saber ao certo o que era isso que eu via. Não, não era torpe provinda do consumo do líquido espirituoso. Sabia-me – sentia-o sem réstia de dúvida – absolutamente sóbrio. Os discos lidos já iam para cima de três ou quatro, mas como permanecera praticamente imóvel o whiskey não tinha levado nenhum outro avanço desde que a borda do copo tocara os lábios logo após o reabastecimento. Passara um coro de horas a pensar em tudo e em nada; nem eu mesmo saberia fazer uma síntese deste facto tão prolixo como paradoxal – na realidade sentia-me tão paroxista como indigentemente indiferente. A concentração escapava-me, em nada o posso negar nem há palavras que me contradigam, porém a responsabilidade, uma vez na vida, não podia ser imputada ao álcool e aos seus efeitos aquando resultado de um consumo desmesurado. A entropia vivia em mim; ou era-o eu. Os meus movimentos redundaram, por tanto que os ponteiros do relógio avançaram, na troca de discos no leitor e a um ou outro espasmo ou contorção devido à abominável sensação de dormência que então perfilava num determinado músculo. Todavia, do que ainda assim concluíra mesmo que num profundo estado de astenia nada ia ao encontro do meu agrado; ao invés assentei num pessimismo que atribuía ao modelo pragmático a que não conseguia escapulir. Sem reservas de maior, via-me projectado num futuro no qual não caberias: tratava-se, mais que tudo, de apenas uma mera questão de tempo e tão-somente isso. Acendi um cigarro. A expressão do rosto devia desenhar-se falida, o brilho nos olhos extinto. Mecanicamente fumei o cigarro, novamente entregue à apatia e a pensamentos dispersos e desconexos, devaneios de quem deixou de acreditar: em si, nos outros, enfim, num qualquer sentido meritório que fizesse mover a minha vontade.
Por hoje basta. O volume de trabalho a que me deixei sujeitar por desleixo, fenómeno indissociável do meu modo de ser, tem-me deixado exaurido física e mentalmente. Pouco é o tempo que resta para mim próprio e careço dele para uso que permita refrear os laços à realidade – a fuga é quase tão importante quanto a integração. Tempo só e exclusivamente para mim ou, mais certo, para o cuidado de mim – coisa de que preciso como o ar que respiramos, por muito poluído que esteja, por mais ordinária que seja a sua qualidade. Hei-de dar continuidade ao que, por mote próprio mas sem saber ao certo das consequências, iniciei. Não me arrependo. Contudo, exige-se uma pausa na redacção de palavras. O descanso assume contornos acima da necessidade, torna-se premente e sei-o insubstituível. Até breve, garanto.
Compreendo perfeitamente a tua decisão e, de um certo modo, também a suporto. Creio que menos não esperarias de mim, nem eu de ti. Sei bem que não abandonaria Lisboa como residência no espaço de tempo do imediato. Tenho as minhas razões, as minhas boas razões; exactamente as mesmíssimas que a ti atribuo com as tuas ausências rumo ao Porto que a pouco e pouco vão sendo cada vez mais extensas. Presumo, num tom pessimista para o tal nós, que não tardará a que te mudes de armas e bagagens. Presunção pouco simpática, como é evidente, já que é mais do que garantido que não me poderei permitir acompanhar-te. Bem sei que estou a tentar não explicitar o inevitável, contudo não sei por quanto tempo eu e tu, ou nós, nos consigamos conter. Se fosse um jogo diria que estávamos perante uma situação em que nenhum cenário dos possíveis é vencedor ou capaz de o ser. O que é mais grave é que estou a habituar-me a viver o meu quotidiano apartado de ti, inclusive nas mais pequenas coisas que amiúde me te traziam à memória. Jantar, um ritual que fazíamos questão que acontecesse a dois, passou a ser normal suceder apenas entre mim e o televisor, isto quando não levo o prato para o quarto e me fixo no ecrã do portátil. Quebrou-se, ou está-se a quebrar, o hábito construído e constituído de nos alimentarmos enquanto nos entrosávamos em amena cavaqueira ignorando por completo os sons emitidos pelo aparelho de televisão invariavelmente ligado. O elo, o nosso elo, parece querer escorregar por entre a impossibilidade que se entrepõe e impõe entre as nossas vontades. Não me é fácil nem agradável admiti-lo, mas o vivido fala por si e, como se diz, contra factos não há argumentos. O amor devia ser mais forte do que tudo. Sê-lo-á?...
Hoje, sábado, declinei o convite semanalmente reiterado para ir tomar café com alguns bons amigos de longa data. O meu círculo social já não é nada de extraordinário, pelo que não é com leveza que pretiro destes momentos especialmente para me dedicar a práticas introspectivas que me conduzem, inapelavelmente nos últimos tempos, à interrogação sobre o nós. Porém foi exactamente esse o leitmotiv subjacente à recusa em ir socializar com a rapaziada. Mais do que convicto, estou certo disso. Almocei um hambúrguer manhoso numa dessas casas que se encontram praticamente ao dobrar de cada esquina e voltei sem mais embargos para casa. Queria-me só ou comigo e as paredes, que é dizer o mesmo. Estirei-me na cama mal me vi livre dos ténis; sem atacadores, até estas criaturas dispensam os laços. Bem a meio da cama, a observar o tecto, procurei colocar-me o mais confortável possível. As mãos atrás da cabeça e as pernas semi-flectidas. Por instantes tal foi a torpe que me enleou que julguei ir cair no sono. Contudo, esforcei-me para me manter acordado. Tinha vários projectos introspectivos em mente aos quais me queria dedicar e não estava disposto a protelá-los. Embora não tenha fugido na íntegra, lá espantei o sono que se aproximara sorrateiramente e matreiro. Pus na boca um kompensan, coisa de que me faço acompanhar religiosamente, a fim de mitigar o desarranjo então surgido no estômago – refluxo esofágico, diz-me o médico. Sabia que havia um nós. Todavia, haveria um projecto para esse nós? Algo de concreto, sustentável? Passei o comprimido de um lado da boca para o outro, revelando o meu nervoso miudinho e a tentativa de apelar aos meus neurónios que laborassem em conformidade com as exigências da situação que jamais me parecera tão delicada quanto agora. Atirei uma mão para o meu lado da cama, mas ao invés da habitual garrafa de água apenas encontrei o vazio; desisti. Afinal, talvez tenha sido burlado por artes de labuta do inconsciente, nem sequer tinha sede. Não de água, pelo menos. Sede, sim. Mas de respostas, por mais hipotéticas e provisórias que elas fossem. Respostas… Quem não as quer? Certos estão os que asserem ser mais fácil dizê-lo do que fazê-lo; já sei que é uma verdade à la Palice, contudo nem por isso menos acertada.
O ruído dos automóveis que circulavam avidamente pela rua incomodava-me, o que, diga-se, é qualquer coisa de bastante raro. Sempre fui um citadino, um nado da metrópole: aqui e ali tenho asseverado que Lisboa é a minha segunda mãe. Coisa tola. Ou nem por isso. Mas, de facto, não é tema para agora – debate para outras núpcias. Por que motivo danado fujo sempre com o rabo à seringa quando farejo assunto que suspeito ser desagradável? A minha capacidade de alienação é extraordinária quando os ventos não me sopram a favor; este é um desses casos, provavelmente dos mais paradigmáticos para exemplificar essa mencionada capacidade perante a contrariedade, a impotência, adversidades de monta, enfim, perante a frustração. Saí da postura confortável em que na cama me encontrava. Ponderei, errando pelo corredor único da casa, se não faria melhor em juntar-me àquele turbilhão de veículos em movimento, percorrendo por meu turno o tecido betuminoso que constituí boa parte da derme da minha amada Lisboa. Após alguma indecisão, subtraí essa hipótese do leque de possibilidades. Afinal pretendia estar comigo e por muito que goste de papar quilómetros enquanto me perco no profundo de mim mesmo esta não me pareceu opção acertada, não para saciar os meus anseios presentes – estava, definitivamente, fora de questão. Ao invés, seria de maior tino permanecer por casa. Acenei que sim, como que corroborando a minha própria sentença. Acabei por me sentar no sofá da sala, não sem que antes me tivesse ajoelhado defronte do singelo bar de madeira para dele retirar um copo baixo e bojudo que enchi com uma medida de três dedos de líquido de um dos meus whiskeys predilectos; dispensei as duas pedras de gelo do costume. Quebrei igualmente a nossa regra de não fumar na sala, coisa que só muito extraordinariamente acontece como quando reunimos alguns amigos, dos meus e dos teus, para uma jantarada que se prolonga noite afora até ao despontar da madrugada – ainda assim, nunca era eu a acender o primeiro cigarro. Levei o copo aos lábios a provar aquela bebida que ainda é mais quente quando desprovida das minhas habituais duas pedras. Poisei-o no braço do sofá para ir apressadamente ao escritório buscar o cinzeiro, creio que o único que temos no nosso cantinho – quanto aos mencionados jantares vários eram os apetrechos que, ao improviso, faziam as vezes de um cinzeiro. Troquei de posições copo e cinzeiro, passando um para a mão e o outro para o braço do sofá. Abri uma frincha nas janelas e voltei a sentar-me, já com o cigarro a fumegar na mão oposta àquela que segurava o copo servido. Fiz com que o mesmo, o copo, encontrasse mais uma vez os meus lábios. Porém, desta feita, aproveitei para uma golada mais profunda, acto que deixou apenas um risco breve de tonalidade âmbar a baloiçar no fundo do copo. Apercebi-me do erro da minha precipitação ao sentir o ardor provocado pelo líquido que atravessava o caminho que o depositaria no estômago, estômago que terá ficado danado comigo vista a forma violenta e célere como desagradavelmente se abrasou. Precisava de ter mais calma, pois não pretendia ficar ébrio o que implicaria, para mais contra a minha vontade, perturbar o regular funcionamento do sistema neuronal. Com o remoto liguei o leitor de dvd que por obra do acaso ainda continha em si o disco de música que lhe introduzira no dia em que havias dito regressar – o que, com facilidade se constata, não sucedeu. O seu impacto para comigo foi no mínimo ambivalente: se por um lado o álbum se encontra no lote dos meus musts, por outro cristalizava em mim a tua ausência já que habitualmente quando tocava, ainda que sem déssemos conta disso nessas alturas, o escutávamos em comunhão. Com um sorriso triste a ponderar sobre a constatação bipolar soergui-me e verti da garrafa para o copo um pouco mais de whiskey, o suficiente para que tomasse a aparência original de quando me servira. Voltei a molhar os lábios, tenuemente, precavido dos efeitos não desejados por trago exacerbado. Serena, a tarde ainda só vai a meio. Escuso precipitar-me esvaziando apenas num breve espaço de um par de horas uma garrafa de quase quarenta graus de álcool que ainda mal encetada tinha sido.
À medida que a tarde se ia fazendo noite outro ocaso acontecia em simultâneo no meu cérebro fervilhante – a saber, o nosso; ou assim o via, sem saber ao certo o que era isso que eu via. Não, não era torpe provinda do consumo do líquido espirituoso. Sabia-me – sentia-o sem réstia de dúvida – absolutamente sóbrio. Os discos lidos já iam para cima de três ou quatro, mas como permanecera praticamente imóvel o whiskey não tinha levado nenhum outro avanço desde que a borda do copo tocara os lábios logo após o reabastecimento. Passara um coro de horas a pensar em tudo e em nada; nem eu mesmo saberia fazer uma síntese deste facto tão prolixo como paradoxal – na realidade sentia-me tão paroxista como indigentemente indiferente. A concentração escapava-me, em nada o posso negar nem há palavras que me contradigam, porém a responsabilidade, uma vez na vida, não podia ser imputada ao álcool e aos seus efeitos aquando resultado de um consumo desmesurado. A entropia vivia em mim; ou era-o eu. Os meus movimentos redundaram, por tanto que os ponteiros do relógio avançaram, na troca de discos no leitor e a um ou outro espasmo ou contorção devido à abominável sensação de dormência que então perfilava num determinado músculo. Todavia, do que ainda assim concluíra mesmo que num profundo estado de astenia nada ia ao encontro do meu agrado; ao invés assentei num pessimismo que atribuía ao modelo pragmático a que não conseguia escapulir. Sem reservas de maior, via-me projectado num futuro no qual não caberias: tratava-se, mais que tudo, de apenas uma mera questão de tempo e tão-somente isso. Acendi um cigarro. A expressão do rosto devia desenhar-se falida, o brilho nos olhos extinto. Mecanicamente fumei o cigarro, novamente entregue à apatia e a pensamentos dispersos e desconexos, devaneios de quem deixou de acreditar: em si, nos outros, enfim, num qualquer sentido meritório que fizesse mover a minha vontade.
Por hoje basta. O volume de trabalho a que me deixei sujeitar por desleixo, fenómeno indissociável do meu modo de ser, tem-me deixado exaurido física e mentalmente. Pouco é o tempo que resta para mim próprio e careço dele para uso que permita refrear os laços à realidade – a fuga é quase tão importante quanto a integração. Tempo só e exclusivamente para mim ou, mais certo, para o cuidado de mim – coisa de que preciso como o ar que respiramos, por muito poluído que esteja, por mais ordinária que seja a sua qualidade. Hei-de dar continuidade ao que, por mote próprio mas sem saber ao certo das consequências, iniciei. Não me arrependo. Contudo, exige-se uma pausa na redacção de palavras. O descanso assume contornos acima da necessidade, torna-se premente e sei-o insubstituível. Até breve, garanto.
quinta-feira, 4 de outubro de 2012
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
ausências evidentes, take III
Retomei, finalmente, o trabalho em pleno e a todo o vapor. Não posso asserir que tal seja suficiente, porém é o melhor que posso – pelo menos por agora, continuo a perceber que certas debilidades carecem ainda de tempo a fim de cicatrizarem convenientemente. O facto de cá não estares quando desperto já não é um exagero tão penoso e quase que incapacitante como há dias atrás. Não me habituo, contudo, à enormidade da cama que encaro como absolutamente desproporcional face às minhas necessidades do aqui e agora. Sei porém que se trata de facto transitório, que em breve voltará a cumprir os seus desígnios albergando duas e não somente uma pessoa.
Sentado à beira do colchão respiro algo ofegante, com uma mão na testa a evitar que a cabeça pendesse mais para baixo. Os pesadelos, os sonhos maus do inconsciente indisciplinado, assim te referes a eles, têm sido uma constante desde há meses – três contabilizo-os com certeza absoluta, desconfiando porém que o desfile vai bem mais longo. Não todos os dias, ou todas as noites. Indisciplinado o inconsciente, vejo-me compelido a corroborar as tuas palavras. Não seguem qualquer lógica que me veja habilitado a descortinar. Surgem aparentemente espontâneos ignorando por completo a dinâmica dos dias em que estás ou aqueles em que estás mas ausente. O que complexifica mais ainda a sua percepção, abortando qualquer capacidade explicativa por onde pudesse, pelo menos ir tentando, enveredar. Por mais que pense nisso não encontro sentido, escasseia qualquer tipo de tendência que permita inferir um qualquer padrão, perco-me em divagações e considerandos que só me enleiam mais profundo na sua teia tecida pelo incaracterístico do entrópico. Basta de pensar em pesadelos, remeta-se para segundo plano as aventuras de um inconsciente indisciplinado. O tempo não cessa de correr. São agora nove e doze da manhã, afirma o despertador pelos seus dígitos de cor verde. Perdi cerca de dez minutos numa tarefa estéril exceptuando unicamente o facto de agora sentir a respiração regularizada. Pelas dez quero estar a trabalhar, envolto em análise de dados estatísticos, diligência tão fácil quanto enfadonha; para além de que exige bastantes horas, de exercício a dar para o mecânico, e o tempo é-me cada vez mais escasso e precioso. Revolvo com o olhar o teu canto vazio na cama, tão sisudo quanto a tromba de um elefante. Agarro numa camisa, invariavelmente daquelas com botões no colarinho, retiro de uma gaveta uns boxers com bonecada imberbe face à idade que tenho, e arrasto umas calças de ganga surradas para a casa de banho. Dez horas. Porque raio não abrem mais cedo?
Olho o espelho que reflecte o rosto de um tipo com cara a acusar cansaço mesmo após seis horas de – merecido – repouso. Reflecte igualmente, para meu profundo desagrado, a queda de cabelo que se acentuou, com particular ênfase nos últimos seis meses. Os pêlos de uma barba mal semeada encobrem parte da pele da face, porquanto me recuso a cortá-la rasa até que um projecto, que não é um qualquer ou apenas mais um, esteja definitivamente concluído. Há quanto tempo não observo o meu rosto sem esta pelugem a deformar a imagem que retorna do espelho? Meses. Para cima de um ano, estou certo. É evidente, mantenho-a aparada, por regra, à medida que se costuma dizer de três dias e acertada já que abomino vê-la desalinhada, com pêlos desgrenhados que conspurcam a ideia de alguma simetria desejada. É nisso em que agora me concentro, com a gillette na mão. Contudo a tarefa não é fácil. Há dias em que me apetece mandar às urtigas a o repto em termos de aposta que concordei comigo próprio; mas não, hei-de ser eu o mais teimoso. A merda da lâmina, três para ser exacto, arrepela-me o pescoço mesmo junto à maçã de Adão. Não escorre sangue, ao menos não me cortei. Se empastasse certas zonas com a mousse de barbear, que aliás custa os olhos da cara mas outra não pode ser que a pele, coitadinha, põe-se desde logo a bradar queixumes que materializa em irritações alérgicas, seria provável que a lâmina deslizasse bem melhor. Porém, não pode ser. Perdia facilmente a noção de fronteira, o até onde pretendo desbastar. Um fio de vermelho. Porra, desta é que foi. Senti a lâmina a cortar por onde não devia. Passo água fria no pescoço se bem que o espelho informe que o meu esforço esteja a ser inútil. Papel higiénico. É prático e resulta prontamente. Se dizem que há coisas de mulher esta, a dos papelitos de papel higiénico colados nos pontos lacerados, é definitivamente coisa de homem; também merecemos, caramba. O branco assume rapidamente o tom avermelhado característico de sangue. Olho o espelho, outra vez. Recordo o meu pai das minhas memórias de infância: também ele espalhava destes papelinhos consoante os cortes que a então lâmina de platina lhe infligia no rosto. Reconheço na imagem reflectida alguns traços fisionómicos demasiado semelhantes, não fosse ele meu pai. Quantos anos teria ele nessa altura? Durante a infância não nos preocupamos com isso, acreditamos que nunca envelheceremos; acreditamos igualmente que aqueles que mais estimamos jamais hão-de partir, como se aos nossos olhos fossem eternos. Enquanto crescemos do que mais custa observar é a morte desse mito consubstanciada nos traços de desgaste próprios de idades mais avançadas que os progenitores, incapazes de os travar, desenvolvem paulatinamente ainda que de modo perene e cada vez mais vincado. Creio que grande parte dessa angústia advém do facto da percepção que a morte os envolve e que para ela irremediavelmente caminham, o que nos traz à consciência a ideia da nossa própria finitude, que também a nossa singularidade terminará inopinadamente num qualquer dia que, para mitigar a dor psicológica, projectamos sempre no futuro e preferencialmente num futuro remoto; todavia, lá está ela bem incrustada, a ideia de morte. Escapo a estas cogitações mórbidas porque agora és tu quem, de rompante, me invade a mente. Gozas comigo – devo dizer brincas, há que ser sério em escolher os termos acertados – cada vez que me olhas e eu a distribuir minúsculos bocados de papel aqui e ali onde o vermelho sangue escorre como água numa tímida nascente que brota da rocha fendida. Ficas pasmada, talvez até um pouco estarrecida, quando me observas nesta prática. Estacas de ombro encostado à ombreira da porta, tão imóvel que pareces continuação lógica da mesma. És capaz de ficar assim minutos em silêncio, sem pronunciar o menor ruído. E eu, pelo canto do olho, vejo-te encantado e todo o meu ser desaba nos oceanos de carinho e ternura que te tenho. Às tantas lá te decides que és um ser ciente, na tua unicidade, e aproximas-te com vagar do meu corpo, abraçando-o de trás para a frente, poisas o teu queixo no meu ombro, depositas um, dois ou três beijos suaves no meu pescoço e eu, em deleite e por ti arrebatado, fecho os olhos para melhor sentir o teu morno e delicado beijar, as mãos que se encaixam diante do meu tórax, puxando-me de encontro a ti, o peso que não pesa do teu queixo em mim apoiado, a respiração que consigo escutar, o cheiro que emanas e que conta ser amor; também eu te amo, muito, correspondo-te o melhor que sei e posso porque quero, porque o meu sentir me exorta a diligenciar-te palavras e gestos, mais gestos, próprios só a quem ama e ama de verdade. Contudo, hoje não te é possível rires-te de mim. Aliás, já faz muito. Demasiado. Estás tão perto e tão longe, sei que moras aqui e no entanto não sei onde te encontrar – por muito que te veja em todo o lado. Esboço um sorriso, que me é transmitido de imediato. Os olhos brilham, proclamam a alegria de viver que ingressa novamente na minha essência. Volto a banhar abundantemente o rosto com água fria. Já não há sangue. Estancou.
Um duche rápido, enxaguar de forma preste mas eficaz o corpo, secar o cabelo com o secador suficientemente distante para que o bafo ardente cuspido da sua boca chegue ao couro cabeludo o mais tépido possível, frio de preferência, desodorizante nas axilas que este calor não perdoa, vestir a roupa previamente deslocada para a casa de banho; camisa invariavelmente de fraldas para fora. Tudo isto realizado mecanicamente, embora contigo a monopolizar os pensamentos e devaneios que duraram neste entretanto. Sei que há dias fiquei de me atribuir resposta a uma interrogação levantada. Não qualquer uma. Daquelas interrogações existenciais e patetas que tantas vezes surgem do aparentemente nada. Patetas, sem dúvida. Mas nem por isso menos passíveis de respostas provisórias entre as quais residem aquelas que mais repudio e temo exactamente pela simples circunstância de poderem vir a encontrar algo – ou alguém – que as corrobore. Ainda não é para hoje, não. Fica para amanhã, sendo que amanhã pode ser um qualquer dia no futuro. Saio. Tranco a porta. Lembro-me, todavia, ter-me esquecido de chegar a escova aos dentes. Retorno a casa num frémito. Escovo o serrote com pouca água e um dentífrico de farmácia com supostas propriedades branqueadoras. Nunca lhe vi resultados, mas insisto no seu uso reiterado mais teimoso que uma parede de maciço cimento. Esguelho os olhos ao espelho, o suficiente para reparar que tenho comigo os óculos que corrigem a visão que à distância se turva, que na camisa pendem os de sol e que, finalmente, não há sinais de pasta no canto dos lábios. Incerto se me havia borrifado com perfume acudo a um frasco verde que inadvertidamente fora deixado numa posição vulnerável correndo sério risco de se estilhaçar de encontro aos azulejos, ou pedra ou seja o que for, que cobrem o patamar do chão. É o perfume que me acompanha há mais anos e que vai, sem desgaste alavancado pelo tempo, encabeçando os meus predilectos, nem sempre correspondido na mesma medida por companheiras de jornada – também tu, neste particular, não fazes excepção; não há mal nisso. Agarro a chave do carro, começo a ficar atrasado, o que não me fica bem visto face ao anterior considerando irónico e sarcástico, talvez até petulante, de quem asseverou mais do que questionou porque raio não abrem mais cedo. Regresso, por motivo desta interrogação, à impertinente incerteza do que estaria a ser cozinhado no Porto. Falta de confiança? Sem duvidar. Só que em mim, não nela. Aqui o demérito é meu, consagrado pela auto-estima deficitária que tão claramente me caracteriza. Mas alto, estou a ir longe demais e não pretendo enunciados sobre os quais mais tarde me seja difícil retractar. Há que ser pragmático, porém igualmente prudente. Não é este o timing para iniciar em deambulações hipotéticas. O foco está no trabalho. Sê exigente contigo e concentra-te no primordial, todo o demais é acessório mesmo que das tripas fizesses coração. O elevador tarda em chegar, teimoso como a tua ausência o é; pelo menos assim a sinto – e desespero na obsessão de te voltar a ter nos braços.
À chegada sou recebido com a simpatia do costume. O ponteiro já ultrapassou as dez horas. As pilhas de material aguardam por mim numa secretária própria para o efeito, colocadas pelas mãos diligentes e simpáticas daqueles que provisoriamente me acolhem. Abri o netbook e aprontei-me para imergir nas tarefas que estão à minha exclusa responsabilidade. Antes, porém, fitei o tecto da sala com a imagem em mente dos risíveis pedaços de papel higiénico colados ao rosto e do teu abraço de possessiva ternura. Recordo porque gosto tanto de ti, de forma imensurável e esmagadora – se bem que no melhor dos sentidos. Arreganhei o sorriso. Até já, miúda.
Sentado à beira do colchão respiro algo ofegante, com uma mão na testa a evitar que a cabeça pendesse mais para baixo. Os pesadelos, os sonhos maus do inconsciente indisciplinado, assim te referes a eles, têm sido uma constante desde há meses – três contabilizo-os com certeza absoluta, desconfiando porém que o desfile vai bem mais longo. Não todos os dias, ou todas as noites. Indisciplinado o inconsciente, vejo-me compelido a corroborar as tuas palavras. Não seguem qualquer lógica que me veja habilitado a descortinar. Surgem aparentemente espontâneos ignorando por completo a dinâmica dos dias em que estás ou aqueles em que estás mas ausente. O que complexifica mais ainda a sua percepção, abortando qualquer capacidade explicativa por onde pudesse, pelo menos ir tentando, enveredar. Por mais que pense nisso não encontro sentido, escasseia qualquer tipo de tendência que permita inferir um qualquer padrão, perco-me em divagações e considerandos que só me enleiam mais profundo na sua teia tecida pelo incaracterístico do entrópico. Basta de pensar em pesadelos, remeta-se para segundo plano as aventuras de um inconsciente indisciplinado. O tempo não cessa de correr. São agora nove e doze da manhã, afirma o despertador pelos seus dígitos de cor verde. Perdi cerca de dez minutos numa tarefa estéril exceptuando unicamente o facto de agora sentir a respiração regularizada. Pelas dez quero estar a trabalhar, envolto em análise de dados estatísticos, diligência tão fácil quanto enfadonha; para além de que exige bastantes horas, de exercício a dar para o mecânico, e o tempo é-me cada vez mais escasso e precioso. Revolvo com o olhar o teu canto vazio na cama, tão sisudo quanto a tromba de um elefante. Agarro numa camisa, invariavelmente daquelas com botões no colarinho, retiro de uma gaveta uns boxers com bonecada imberbe face à idade que tenho, e arrasto umas calças de ganga surradas para a casa de banho. Dez horas. Porque raio não abrem mais cedo?
Olho o espelho que reflecte o rosto de um tipo com cara a acusar cansaço mesmo após seis horas de – merecido – repouso. Reflecte igualmente, para meu profundo desagrado, a queda de cabelo que se acentuou, com particular ênfase nos últimos seis meses. Os pêlos de uma barba mal semeada encobrem parte da pele da face, porquanto me recuso a cortá-la rasa até que um projecto, que não é um qualquer ou apenas mais um, esteja definitivamente concluído. Há quanto tempo não observo o meu rosto sem esta pelugem a deformar a imagem que retorna do espelho? Meses. Para cima de um ano, estou certo. É evidente, mantenho-a aparada, por regra, à medida que se costuma dizer de três dias e acertada já que abomino vê-la desalinhada, com pêlos desgrenhados que conspurcam a ideia de alguma simetria desejada. É nisso em que agora me concentro, com a gillette na mão. Contudo a tarefa não é fácil. Há dias em que me apetece mandar às urtigas a o repto em termos de aposta que concordei comigo próprio; mas não, hei-de ser eu o mais teimoso. A merda da lâmina, três para ser exacto, arrepela-me o pescoço mesmo junto à maçã de Adão. Não escorre sangue, ao menos não me cortei. Se empastasse certas zonas com a mousse de barbear, que aliás custa os olhos da cara mas outra não pode ser que a pele, coitadinha, põe-se desde logo a bradar queixumes que materializa em irritações alérgicas, seria provável que a lâmina deslizasse bem melhor. Porém, não pode ser. Perdia facilmente a noção de fronteira, o até onde pretendo desbastar. Um fio de vermelho. Porra, desta é que foi. Senti a lâmina a cortar por onde não devia. Passo água fria no pescoço se bem que o espelho informe que o meu esforço esteja a ser inútil. Papel higiénico. É prático e resulta prontamente. Se dizem que há coisas de mulher esta, a dos papelitos de papel higiénico colados nos pontos lacerados, é definitivamente coisa de homem; também merecemos, caramba. O branco assume rapidamente o tom avermelhado característico de sangue. Olho o espelho, outra vez. Recordo o meu pai das minhas memórias de infância: também ele espalhava destes papelinhos consoante os cortes que a então lâmina de platina lhe infligia no rosto. Reconheço na imagem reflectida alguns traços fisionómicos demasiado semelhantes, não fosse ele meu pai. Quantos anos teria ele nessa altura? Durante a infância não nos preocupamos com isso, acreditamos que nunca envelheceremos; acreditamos igualmente que aqueles que mais estimamos jamais hão-de partir, como se aos nossos olhos fossem eternos. Enquanto crescemos do que mais custa observar é a morte desse mito consubstanciada nos traços de desgaste próprios de idades mais avançadas que os progenitores, incapazes de os travar, desenvolvem paulatinamente ainda que de modo perene e cada vez mais vincado. Creio que grande parte dessa angústia advém do facto da percepção que a morte os envolve e que para ela irremediavelmente caminham, o que nos traz à consciência a ideia da nossa própria finitude, que também a nossa singularidade terminará inopinadamente num qualquer dia que, para mitigar a dor psicológica, projectamos sempre no futuro e preferencialmente num futuro remoto; todavia, lá está ela bem incrustada, a ideia de morte. Escapo a estas cogitações mórbidas porque agora és tu quem, de rompante, me invade a mente. Gozas comigo – devo dizer brincas, há que ser sério em escolher os termos acertados – cada vez que me olhas e eu a distribuir minúsculos bocados de papel aqui e ali onde o vermelho sangue escorre como água numa tímida nascente que brota da rocha fendida. Ficas pasmada, talvez até um pouco estarrecida, quando me observas nesta prática. Estacas de ombro encostado à ombreira da porta, tão imóvel que pareces continuação lógica da mesma. És capaz de ficar assim minutos em silêncio, sem pronunciar o menor ruído. E eu, pelo canto do olho, vejo-te encantado e todo o meu ser desaba nos oceanos de carinho e ternura que te tenho. Às tantas lá te decides que és um ser ciente, na tua unicidade, e aproximas-te com vagar do meu corpo, abraçando-o de trás para a frente, poisas o teu queixo no meu ombro, depositas um, dois ou três beijos suaves no meu pescoço e eu, em deleite e por ti arrebatado, fecho os olhos para melhor sentir o teu morno e delicado beijar, as mãos que se encaixam diante do meu tórax, puxando-me de encontro a ti, o peso que não pesa do teu queixo em mim apoiado, a respiração que consigo escutar, o cheiro que emanas e que conta ser amor; também eu te amo, muito, correspondo-te o melhor que sei e posso porque quero, porque o meu sentir me exorta a diligenciar-te palavras e gestos, mais gestos, próprios só a quem ama e ama de verdade. Contudo, hoje não te é possível rires-te de mim. Aliás, já faz muito. Demasiado. Estás tão perto e tão longe, sei que moras aqui e no entanto não sei onde te encontrar – por muito que te veja em todo o lado. Esboço um sorriso, que me é transmitido de imediato. Os olhos brilham, proclamam a alegria de viver que ingressa novamente na minha essência. Volto a banhar abundantemente o rosto com água fria. Já não há sangue. Estancou.
Um duche rápido, enxaguar de forma preste mas eficaz o corpo, secar o cabelo com o secador suficientemente distante para que o bafo ardente cuspido da sua boca chegue ao couro cabeludo o mais tépido possível, frio de preferência, desodorizante nas axilas que este calor não perdoa, vestir a roupa previamente deslocada para a casa de banho; camisa invariavelmente de fraldas para fora. Tudo isto realizado mecanicamente, embora contigo a monopolizar os pensamentos e devaneios que duraram neste entretanto. Sei que há dias fiquei de me atribuir resposta a uma interrogação levantada. Não qualquer uma. Daquelas interrogações existenciais e patetas que tantas vezes surgem do aparentemente nada. Patetas, sem dúvida. Mas nem por isso menos passíveis de respostas provisórias entre as quais residem aquelas que mais repudio e temo exactamente pela simples circunstância de poderem vir a encontrar algo – ou alguém – que as corrobore. Ainda não é para hoje, não. Fica para amanhã, sendo que amanhã pode ser um qualquer dia no futuro. Saio. Tranco a porta. Lembro-me, todavia, ter-me esquecido de chegar a escova aos dentes. Retorno a casa num frémito. Escovo o serrote com pouca água e um dentífrico de farmácia com supostas propriedades branqueadoras. Nunca lhe vi resultados, mas insisto no seu uso reiterado mais teimoso que uma parede de maciço cimento. Esguelho os olhos ao espelho, o suficiente para reparar que tenho comigo os óculos que corrigem a visão que à distância se turva, que na camisa pendem os de sol e que, finalmente, não há sinais de pasta no canto dos lábios. Incerto se me havia borrifado com perfume acudo a um frasco verde que inadvertidamente fora deixado numa posição vulnerável correndo sério risco de se estilhaçar de encontro aos azulejos, ou pedra ou seja o que for, que cobrem o patamar do chão. É o perfume que me acompanha há mais anos e que vai, sem desgaste alavancado pelo tempo, encabeçando os meus predilectos, nem sempre correspondido na mesma medida por companheiras de jornada – também tu, neste particular, não fazes excepção; não há mal nisso. Agarro a chave do carro, começo a ficar atrasado, o que não me fica bem visto face ao anterior considerando irónico e sarcástico, talvez até petulante, de quem asseverou mais do que questionou porque raio não abrem mais cedo. Regresso, por motivo desta interrogação, à impertinente incerteza do que estaria a ser cozinhado no Porto. Falta de confiança? Sem duvidar. Só que em mim, não nela. Aqui o demérito é meu, consagrado pela auto-estima deficitária que tão claramente me caracteriza. Mas alto, estou a ir longe demais e não pretendo enunciados sobre os quais mais tarde me seja difícil retractar. Há que ser pragmático, porém igualmente prudente. Não é este o timing para iniciar em deambulações hipotéticas. O foco está no trabalho. Sê exigente contigo e concentra-te no primordial, todo o demais é acessório mesmo que das tripas fizesses coração. O elevador tarda em chegar, teimoso como a tua ausência o é; pelo menos assim a sinto – e desespero na obsessão de te voltar a ter nos braços.
À chegada sou recebido com a simpatia do costume. O ponteiro já ultrapassou as dez horas. As pilhas de material aguardam por mim numa secretária própria para o efeito, colocadas pelas mãos diligentes e simpáticas daqueles que provisoriamente me acolhem. Abri o netbook e aprontei-me para imergir nas tarefas que estão à minha exclusa responsabilidade. Antes, porém, fitei o tecto da sala com a imagem em mente dos risíveis pedaços de papel higiénico colados ao rosto e do teu abraço de possessiva ternura. Recordo porque gosto tanto de ti, de forma imensurável e esmagadora – se bem que no melhor dos sentidos. Arreganhei o sorriso. Até já, miúda.
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
ausências evidentes, take II
Puxei do telefone apenas com a finalidade de confirmar a hora certa. Amanhecera há bastante e eu havia dado conta disso. Seis e meia da matina e nem um minuto dormido. Nada disto me surpreenderia se remontasse aos meus quotidianos de há dois pares de meses, mais ou menos isso. Todavia, desde que vivemos no nosso regime de comunhão que decidi, com um hábil sucesso cuja explicação me ultrapassa, encurtar drasticamente no meu tardio horário de recolha ao leito. Não sempre, conheces bem as excepções que sucedem com particular ênfase nos momentos em que permito que o trabalho se acumule até que pilhas de livros e de outros documentos se edifiquem desde o chão até ao quase contacto com o tecto ou naqueles em que os timings apertam até ao seu praticamente impossível cumprimento. Curiosamente, e simpático da tua parte, deixaste cedo de barafustar comigo e com a entropia que aqui e ali vou acometendo no espaço quarto a que preferimos chamar nosso escritório. Compreendeste-me e soubeste quase de imediato que essa era uma constante da minha essência, o meu modus operandi por assim dizer, e sem julgamentos de monta aceitaste-me como sou no amplexo delico-doce do nosso relacionamento. Percebeste o quanto isso era importante para mim e que no entremeio do caos que levantava à minha volta me entendia como se estivesse a viver imerso no meu habitat natural; provavelmente até será verdade... Não é propriamente a tua maneira de trabalhar contudo, de alguma forma, aceitaste por analogia e sem hesitações de maior que tal como tu tens o teu método é perfeitamente lógico que eu tenha o meu, por, passando a redundância, mais ilógico que te apareça à compreensão preconcebida; dou-te enorme valor por essa tua capacidade, sei que não é fácil interagir com alguém assim, quanto mais conviver, e já passei, inclusivamente, por algumas experiências bastante amargas cujos desfechos me vou abster de elucidar e de comentar. Mais ainda, captaste com uma impressionante lucidez que careço de momentos exclusivamente dedicados a mim, na mais egoísta das acepções. Pese embora esta contra-regra, a prática comummente estabelecida, mais por acordo tácito do que pela força de forçadas negociações, dita que nos deitemos apenas com intervalos breves entre ambos ou que o façamos em primorosa sincronia. Existem ainda outras excepções, pois. Todavia, essas não dependem por inteiro da nossa vontade e estão inapelavelmente associadas à nossa prática profissional. Falo, claro está, das ausências a que somos obrigados e que se consubstanciam em deslocações a outros pontos do país ou aquelas além-fronteira – onde nem sempre, ou quase nunca seja mais bem dito, nos podemos fazer acompanhar um ao outro; as justificações para essas viagens a sós são imensas e vou escusar-me a enredar nelas. Porém insisto: quando as luzes, seja a dos candeeiros de cabeceira ou da televisão do quarto, se apagam até ao outro dia é fácil um saber onde o outro se encontra, bastando escutar aquela respiração que não a nossa, o cheiro que é o do outro ou um estender num movimento os membros que chocarão amigavelmente de encontro ao corpo do ente querido; acrescentaria, no meu caso, ao desmesurado ronco de ressono de que te queixas com cara de má traída pela séria postura brincalhona com que as tuas formas ficam, à guisa da ternura que me tens, esculpida. Seis e trinta. Era um desses momentos de ausência.
Ergui-me sem sobressalto mas definitivamente decidido. Após ter poisado com cuidado o telemóvel, smart phone como se lhes dirigem alguns, levei paulatinamente ambas as mãos ao rosto cobrindo-o, ou essa foi a sensação que se me instalou, por completo. Talvez estivesse a habituar os olhos à parca luminosidade que penetrava no nosso quarto, o mais íntimo dos nossos espaços – ou talvez não, sei lá, foi o que me ocorreu pensar na altura. Despi a t-shirt de dormir, digo que as tenho de ir à rua e as para dormir, num gesto de rompante e meio inconsciente e experimentei algum alívio face ao desconfortável calor que sentia. Esfreguei os olhos, apesar de nada ter dormido suponho que estivessem algo remelosos, e compus os boxers enquanto caminhava meio zonzo em direcção ao escritório. Fechei com cuidado as portas, a do quarto de sono e de sonhos e a do escritório onde tive de me desviar da tralha costumeira para assomar à janela e ao malfadado maço de tabaco, já que os vizinhos são gente boa que merece a minha consideração e, para mais, respeito as poucas horas de sono que agora lhes são permitidas pois que recentemente acrescentaram um pequeno e exigente membro à família; felizmente as paredes, ou o que for para além destas, são de boa qualidade e raras foram as vezes em que realmente escutei o choro que tanto apela ao consolo próprio de uma criança que conta somente com algumas semanas de existência: bem-vindo ao mundo, puto.
Inclinado no parapeito a tentar acender um cigarro e com as capacidades mentais ainda excessivamente dormentes procurei com os olhos a Lua. Acendi o cigarro. À Lua confesso não a ter visto, teria já dado a volta ao horizonte. O Sol, esse, brilhava plácido e tímido. Também ele, como eu, deveria ter sono, pensei num devaneio pueril mas que de certa forma me acalentou o espírito. Sorri com a trivialidade do meu pensamento e quase me engasguei com a porcaria do fumo do cigarro que ia queimando, entre dedos, na minha mão esquerda. Estarias tu na terra dos sonhos? Com certeza que sim. És muito menos propensa a este tipo de deambulações nocturnas, madrugadoras seria mais exacto, do que eu. Sempre com os quilómetros que nos separavam em mente fiz por imaginar-te na tua cama do Porto, sossegada, serena, premissa irrevogável quando dormes. Voltei a sorrir, desta feita devido à tamanha estupidez do sentido que permitira ao meu pensamento; ou, admito, que a ele se tenha imposto por consequência das minhas imensuráveis inseguranças e da precária auto-estima que me caracteriza. Dormirias tu sozinha, sempre, tal como eu, quando os deveres nos infligem a obrigação destas cisões para mim invariavelmente indesejadas? Expeli a última baforada de fumo sugada do cigarro que deixei cair no cinzeiro de vidro com um risco de água antes de me entregar ao exame da bacorada pensada. Vivemos em tempos incertos e de risco. A literatura da especialidade é prenhe em considerações sobre este fenómeno; estes fenómenos. Estamos bem cientes e mais do que avisados para a realidade das vidas que cada vez mais se vivem com urgência, no imediato, espúrias face às gerações antecedentes, pressionadas por processos de individualização encarrilados pela sociedade do consumo e do prazer inadiáveis que repudia o esforço e até mesmo, amiúde, o mérito. É esta a profecia para as nossas gerações e creio que engolimos o engodo sem um único apelo nem à consciência nem à razão. Somos portanto os portadores do pecado que aceitámos como fardo sem contabilizar prejuízos mas tão somente a realização instantânea. Pareceu-nos o oásis no deserto, mas escusámo-nos a ponderar como atravessá-lo por completo desprovidos da bagagem adequada – com a crença inabalável de que outros oásis surgirão pelo percurso sempre que entendermos, simplesmente pelo facto de nos é devido, como que por um qualquer direito divino agora reificado. Perco-me a divagar e sou omisso na resposta que (não) me quero dar. O dia já é praticamente adulto. O cigarro na mão esquerda, coisa de hábito, é já o terceiro praticamente consecutivo. Expiro, de novo, profundamente. Porém, agora resultado do peso sentido na alma. É impossível evitarmo-nos, é impossível desviarmo-nos das nossas congeminações e das nossas respostas provisórias. Se não padecermos de doença mental incapacitante que nos aliene e esquarteje a personalidade, é impossível fugirmos de nós próprios, a tentativa de escape é inglória e vã tarefa. Decidi aceitar os meus próprios juízos. É evidente que seria… a minha questão abarcava várias respostas, todas elas plausíveis, tanto as prazenteiras como as aterrorizadoras.
Removi com a maior das calmas os headphones. Nem sei se o i-pod ficou a tocar para as paredes, não me recordo de ter interrompido a sua mecânica pré-determinada. Tanto faz. Não tinha mais por onde contornar a dúvida suscitada. Limitei-me a desembaraçar-me da música que trauteava nos meus ouvidos por um único motivo: queria ouvir o mundo; ou pelo menos um mundo mais abrangente, aquele que agora me rodeava e do qual me podia acercar, com maior ou menor gradação, com a participação integral e sobreposta dos meus sentidos. Sentia-me, nesta medida, mais próximo da realidade, seja lá o que signifique o conceito de real – de garantido tenho apenas o facto de que este é entendido de forma mais ou menos subjectiva por cada um de nós, deformado pelas nossas lentes de visão que destacam percepções distorcidas pelo nosso esquema mental; todavia é o mais próximo que temos da representação comum dos acontecimentos encadeados e sempre em catadupa que formam o agregado das consciências e das práticas humanas. Via-me assim mais humano, mais vulnerável, todavia na melhor das condições para tentar perceber, mais do que aventar resposta, o que havia questionado. A angústia é matéria integrante da condição humana, conhecemos-lhe o sabor desde a mais tenra idade, eventualmente ainda antes de termos consciência de nós próprios, dos princípios constituintes que enformarão e atribuirão sentido à nossa identidade pessoal. Outro cigarro começou a queimar por imposição de uma chama alimentada a butano que encostara a uma das suas duas extremidades. Os meus pulmões contestavam pelos maus-tratos infligidos, facto que decidi por ignorar já que a minha mente se queria a trabalhar exclusivamente nos porquês de um porquê que suscitara e que, no preciso momento, experienciava como o mais demolidor dos mecanismos de aniquilação destrutiva.
Ia apalpando, em modos de um procedimento fugaz e prenhe de opressora incerteza, terreno do que não estava certo de querer percorrer mas do qual estava certo não poder evitar. A adrenalina pingava num compasso mais apertado enquanto o músculo cardíaco bombeava a seiva vital a um ritmo condizente com um estado de taquicardia. Contava cada sístole, cada diástole, num ritmo de quem está atrasado para o seu próprio funeral quando todos os outros, os vivos, já jazem a carpir a partida sem regresso negociável, na garganta como se o próprio órgão cardíaco exigisse por sair através da cavidade bocal. As mãos respondiam ao estímulo psicossomático movendo-se livres da minha vontade num treme-treme de varas verdes assoladas pelo sopro de tempestade tropical. Com dificuldade lá consegui limpar com o braço direito o suor que escorria afoito de uma testa gelada. Era premente recuperar o controlo absoluto do meu corpo, porém para isso era inevitável conseguir acalmar-me. Para iludir o sistema nervoso ao rubro e em alerta vermelho considerei racionalizar aquela resposta promovida pela ansiedade que sitiara a minha existência; quebrar o círculo vicioso da sensação de pânico teria de ser obrigatoriamente o primeiro dos passos a executar sendo que não podia falhar, em circunstância alguma, o que condenaria ao fracasso todo o processo subsequente, na sua realização. Se bem que não sou técnico de saúde, particularmente de saúde mental, e nem aspiro em sê-lo, domino medianamente algumas estratégias úteis para prosseguir com razoável êxito a empreitada de iludir o cérebro do seu sentimento de impotência e de falência face à circunstância que o intimidara por demais. O amor que sinto por ti vergou-me até ao limite mais baixo da minha existência. Contudo, foi igualmente o sentimento de charneira para dominar e retomar na íntegra a lucidez que como areia se esvazia das mãos que a torneiam e cingem: a minha identidade estava agora a salvo – alguma vez estivera efectivamente em causa? – e eu voltava a reinar sobranceiro sobre o meu castelo. Blindagem erguida, é hora de mergulhar na dúvida e aplicar-lhe os critérios da crítica racional sem olvidar que as emoções sobrevivem por razão que lhes é inerentemente própria. O ritmo cardíaco desbragado havia-se moderado, se bem que pulsasse ainda forte nas têmporas, e a saliva regressava à boca árida.
Era natural que… bom, não seria bem natural o termo que buscava, que visava empregar. Tinha acabado de me recompor pelo que a obviedade da minha fragilidade de resposta não espantasse. Era plausível, sim, plausível soa bem melhor e é um conceito mais moldável ao exercício racional, que o pesadelo imaginado se concretizasse. Afinal que sou eu mais que os outros? Sorri, sabendo muitíssimo bem a resposta. Finalmente um sorriso conseguira efectivar-se, torneando toda a amálgama entrópica por que passara nos imediatos minutos que o antecederam. Reganhara a totalidade da minha singular individualidade.
Volte face momentâneo, decidi-me por um armistício. Tanto comigo como… basicamente comigo, não interessa estar agora a complicar. Persuadido de que devia umas horas ao sono retornei àquela cama desproporcional, gigantesca quando para meu uso individual. Barrei o melhor que pude a luz do sol: estores cerrados, cortinas corridas uma de encontro à outra. Sabia que a minha decisão implicava em não comparecer ao trabalho naquela manhã. Todavia, em nada me sentia incomodado, o meu trabalho depende mais do objectivo a cumprir do que dos meios que unidos concorrem para concretizar o tal objectivo; afinal, os meios são mais flexíveis, facilmente manipuláveis por quem já não é um mero aprendiz na arte. A componente laboral não perturbava a minha consciência, sabendo o que acabei de explanar, pelo que acudi ao chamamento do físico quebrado. Voltei a deitar-me só com o lençol, e parcialmente, a cobrir-me. Os olhos exaustos acolheram de bom grado a escuridão encontrada assim que deixei cair as pálpebras. Retirei da tomada o maior número de neurónios que pude, mais tarde iria carecer do exercício de cada um deles, sem direito a exclusões mesmo que justificadas. O assunto não está encerrado, longe disso, só agora fendi terreno a trejeito para os primeiros trajectos face a uma questão que me coloca em combate comigo próprio; para mais tarde que agora não. Lá chegarei, devidamente equipado e pronto, com baioneta erguida e estojo de primeiros-socorros a pender do cinto; porém, põe-te prestes: a circunstância não tardará esfaimada por sangue – o teu.
Porquê a minha teimosa persistência em escrever quando me sei bem aquém do meu melhor? Que justificação para este fenómeno? Resposta inicial e provisória, não consigo deixar de escrever, como se fosse uma espécie de comportamento compulsivo. Todavia, poderia fazê-lo num registo mais privado, sem me expor, sem nos expor, num espaço de fácil acesso embora o saiba visitado com uma frequência cuja expressão é praticamente abaixo do nada significativa. Também sei, continuo convicto disso com um nível de certeza confortavelmente elevado, que desconheces por completo o endereço deste blogue; desconheces-lhe, inclusivamente, a existência. Em todo o caso exponho-me, por mais mínima que seja essa exposição. Pior, exponho-me ciente que ainda estou excessivamente debilitado pelo ‘cansaço cerebral’ que me acometeu há mais de um mês e do qual não recuperei ainda em pleno, falta ainda bastante e muito ‘exercício neuronal’. Não importa. Talvez seja apelativa, e até confortável, uma resposta nestes termos: pouco importa o estado em que nos encontramos, o que realmente importa é o esforço que envidamos para darmos o nosso melhor – independentemente das circunstâncias de um momento preciso. Só assim crescemos como pessoas, só assim cumprimos as parcelas do todo que é o nosso projecto de vida, estejamos a ultrapassar o mais intransponível dos obstáculos ou estejamos no topo da montanha a observar e a apreciar os ganhos que cremos fruto do nosso mérito. Afinal miúda, talvez um dia te venha a falar deste blogue, a apresentar-to. Só por ora, fico por aqui.
sexta-feira, 7 de setembro de 2012
espiral
Percorro a casa a fazer mil coisas sem nada realmente fazer. Não, não sei o que faço. Nem o que digo. O que penso. Estou só certo do que procuro e não encontro porque não está. Perdido. Não é a primeira vez. É normal. Já passa. Encontra-me.
"i've been under the gun
i've lost and i've won"
'under the gun', sisters of mercy
sábado, 1 de setembro de 2012
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
ausências evidentes, take I
Volto a experimentar a tua ausência. Ontem saí contrariado para te conduzir a Sta. Apolónia, mal tendo aberto a boca no carro durante todo o percurso. Inversamente, escutava cada palavra tua com uma avidez tamanha que cheguei a temer ser a última vez que te ouvia. Tolices minhas às quais te vou poupando, isto se delas já não tiveres conhecimento dessa forma defraudando na íntegra os meus esforços de tas ocultar. De facto sou um tolo que demasiadas vezes se esquece de agradecer o facto da fortuna nos ter proporcionado viver num país de modesta dimensão territorial como Portugal o é. Ambos estamos cientes que a mobilidade humana se instalou para ficar e, ainda que a custo, a ela teremos que nos habituar. Curtas as distâncias, aqui. Imagino que preocupante seria ver-te abalar de NY para Palo Alto, CA, ou assim… Contudo, nem mesmo essa cogitação me sossega. Tremo cada vez que te observo partir. Temo que um dia seja a última vez.
O alfa pendular a levar-te para longe era um cenário construído do qual, por mais esforços que envidasse, não me conseguia abstrair. E tu, tu estavas ainda ali ao meu lado, escassos os centímetros que intervalavam os nossos corpos. Revias o teu discurso em tom bem audível, como que aguardando pela minha crítica que desta não veio porque não; não te interromper era-me fundamental, tal como as palavras que vocalizavas com a tua voz tão doce e em simultâneo firmemente decidida. Foi algo em ti, uma característica biológica e social, por assim dizer, que logo me cativou desde que pela primeira vez fui colocado na tua presença, de nada sendo relevante que nesse acontecimento o orador fosse eu. Característica biológica e social, sem dúvida: o teu tom de voz foi-te geneticamente concedido, transmitido pelos teus papás; a postura e a colocação do mesmo foi coisa culturalmente construída que adestraste à tua medida. Ficaria horas a escutar-te, sem hesitação e sem que o conteúdo importasse para o que fosse. Ouvir-te-ia dissertar sobre física quântica se fosse tua vontade, ou se tivesses saber para o executar. Estranha ambivalência, esta: a tua voz e o como a instrumentalizas excita-me e serena-me. Agora, todavia, era o pouco que me restava antes de te deixar abalar por mais quinze ou vinte dias em direcção à terra dos tripeiros – sem ofensa, do Porto só das melhores recordações.
A minha vontade era a de implorar-te que não fosses, que não me deixasses só com tantos outros na cidade alfacinha; excessivamente populada, obsequiosamente vazia sem a tua presença. Miúda, como me apetecia fazê-lo. Porém tratava-se de um delírio e nada mais do que isso, algo que deveria pertencer à esfera onírica. Jamais me passaria pela mente endossar-te tamanho e tão injusto requerimento; tens a tua vida profissional, como eu tenho a minha, e o respeito que te tenho é provavelmente superior ao respeito que por mim nutro… jamais, mesmo que tal possa vir um dia a ser a nossa perdição, o nosso tendão de Aquiles rompido e alimentado por um veneno por nós implacavelmente alentado no dia a dia.
Fiquei notoriamente mais ranzinza e impaciente por não conseguir encontrar espaço onde parquear o veículo. Ter-te-ia que deixar à porta da estação com apenas um beijo fugidio e fugaz? Parei, trancando a saída a dois ou três automóveis estacionados em conformidade com a dita lei. Abri e saí do nosso que nem uma fúria, batendo com força a porta à minha passagem. Dirigia-me, cego, ao porta bagagens. Do seu interior retirei um trolley que em nada me pareceu pesado, inversamente ao que sucedera quando saíramos de casa. Há muito que devia saber dos paradoxos que acometem distintos estados psicológicos. E sei-o, todavia em casa de ferreiro… o resto já se sabe. Só agora deixavas o carro, com os teus apontamentos em páginas soltas e o portátil arrumados na tua mala de métier. Percebi perfeitamente que me observavas com um ar estranho, ou melhor, de quem estranhava o meu comportamento. Conheces-me bem melhor do que isso, não te sou terreno virgem. Ainda assim teimas em fazer esse ar de quem se sente intrigado, e até algo ofendido, em todas estas circunstâncias ou outras que semelhantes. Talvez também eu teime em manter a mesmíssima prática, inadequada conduta de puto ofendido ou em ferrenha e indissipável birra. Desloquei-me, a mim e ao trolley cujas rodas já se arrastavam pelo chão, até à entrada principal da estação de Sta. Apolónia sem me dignar a olhar para trás e sabendo perfeitamente que não te encontravas a meu lado. Então parei e esbocei um sorriso tão tolo, querendo fazer passar que nada se passava, que logo o desmontaste na tua mente, o que se tornou mais do que perceptível no teu semblante. Sabia que não conseguiria fazê-lo vingar, mas a vã esperança de que o facto pudesse vir a suceder justificou ter ignorado, e quiçá ofendido, a tua arguta inteligência. Mantive-me fiel ao meu sorriso extemporâneo com a finalidade de não me tornar mais ridículo ainda, impedindo-me do absoluto desmoronamento exactamente ali. Despeguei-me da bagagem que transportava e assomei com ambas as mãos ao teu rosto, beijando-te delicadamente, e com todo o meu amor, os lábios; nada agora em mim mentia. Permitiste que a tua pasta escorregasse dos teus dedos até ao chão e abraçaste-me com vigor. Um beijo não te bastava. Muito menos a mim.
Miúda, a cada dia que passa noto a minha escrita, a sua qualidade ou falta dela, mais tacanha e mesquinha. A realidade é que me encontro bem longe do meu melhor. Já tu… Quando escreves, mesmo que o faças esmagadoramente num registo técnico, fluem-te as palavras com tremenda naturalidade e graça; e espírito. Reconheceria a assinatura do teu verbo em qualquer texto produzido pela tua pena. Vive no teu sangue e só lamento que não passes com maior frequência para outros registos, outros universos que dominarias tão bem… sei que sabes disso, porém não insisto contigo. Enfim, és muito melhor do que eu; melhor apenas, quando me encontro nos meus dias. Não te consigo explicar porquê, porque estou tão banal e ordinário, não só na forma mas especialmente nos conteúdos, conteúdos esses ora pervertidos por uma criatividade imaginativa estagnada e propensa ao definhamento. Talvez seja de todo o cansaço que se acumula, do uso excessivo do discurso técnico, do peso da tua ausência, da urgência em terminar a redacção do trabalho que me poderá atribuir o derradeiro grau académico. Stress. Ou desculpas, meras e incipientes desculpas para uma falha determinante que se instalou e que me recuso a todo o custo em reconhecer. Seja lá como for. Virá o dia em que conhecerei de certo uma resposta mais conclusiva e esclarecedora. Mencionei em texto pretérito que haveria de dar-te a conhecer este meu espaço, que reservo por variados motivos, tantos que nem vale a pena elencar nenhum. Reconheço que estou cada vez menos certo que esse acontecimento venha a ter lugar. Podem afirmar que tudo isto trata de uma espécie de competição e que se to não dou a conhecer é exactamente por me sentir aprioristicamente derrotado. Se um dia te contarem isso não acredites. São tretas de quem não nos quer bem. Vivo contigo numa relação partilhada, não numa corrida a disputar lugar medalhado. Miúda… orgulho-me demasiado de ti para que pudesse transmutar-me numa pedante criatura invejosa, coisa hedionda que só me desperta asco em todas as extremidades nervosas. Vou desligar a máquina: o mundo não pára para observar os meus devaneios. Sabes, fazes-me falta. Mais que muita.
O alfa pendular a levar-te para longe era um cenário construído do qual, por mais esforços que envidasse, não me conseguia abstrair. E tu, tu estavas ainda ali ao meu lado, escassos os centímetros que intervalavam os nossos corpos. Revias o teu discurso em tom bem audível, como que aguardando pela minha crítica que desta não veio porque não; não te interromper era-me fundamental, tal como as palavras que vocalizavas com a tua voz tão doce e em simultâneo firmemente decidida. Foi algo em ti, uma característica biológica e social, por assim dizer, que logo me cativou desde que pela primeira vez fui colocado na tua presença, de nada sendo relevante que nesse acontecimento o orador fosse eu. Característica biológica e social, sem dúvida: o teu tom de voz foi-te geneticamente concedido, transmitido pelos teus papás; a postura e a colocação do mesmo foi coisa culturalmente construída que adestraste à tua medida. Ficaria horas a escutar-te, sem hesitação e sem que o conteúdo importasse para o que fosse. Ouvir-te-ia dissertar sobre física quântica se fosse tua vontade, ou se tivesses saber para o executar. Estranha ambivalência, esta: a tua voz e o como a instrumentalizas excita-me e serena-me. Agora, todavia, era o pouco que me restava antes de te deixar abalar por mais quinze ou vinte dias em direcção à terra dos tripeiros – sem ofensa, do Porto só das melhores recordações.
A minha vontade era a de implorar-te que não fosses, que não me deixasses só com tantos outros na cidade alfacinha; excessivamente populada, obsequiosamente vazia sem a tua presença. Miúda, como me apetecia fazê-lo. Porém tratava-se de um delírio e nada mais do que isso, algo que deveria pertencer à esfera onírica. Jamais me passaria pela mente endossar-te tamanho e tão injusto requerimento; tens a tua vida profissional, como eu tenho a minha, e o respeito que te tenho é provavelmente superior ao respeito que por mim nutro… jamais, mesmo que tal possa vir um dia a ser a nossa perdição, o nosso tendão de Aquiles rompido e alimentado por um veneno por nós implacavelmente alentado no dia a dia.
Fiquei notoriamente mais ranzinza e impaciente por não conseguir encontrar espaço onde parquear o veículo. Ter-te-ia que deixar à porta da estação com apenas um beijo fugidio e fugaz? Parei, trancando a saída a dois ou três automóveis estacionados em conformidade com a dita lei. Abri e saí do nosso que nem uma fúria, batendo com força a porta à minha passagem. Dirigia-me, cego, ao porta bagagens. Do seu interior retirei um trolley que em nada me pareceu pesado, inversamente ao que sucedera quando saíramos de casa. Há muito que devia saber dos paradoxos que acometem distintos estados psicológicos. E sei-o, todavia em casa de ferreiro… o resto já se sabe. Só agora deixavas o carro, com os teus apontamentos em páginas soltas e o portátil arrumados na tua mala de métier. Percebi perfeitamente que me observavas com um ar estranho, ou melhor, de quem estranhava o meu comportamento. Conheces-me bem melhor do que isso, não te sou terreno virgem. Ainda assim teimas em fazer esse ar de quem se sente intrigado, e até algo ofendido, em todas estas circunstâncias ou outras que semelhantes. Talvez também eu teime em manter a mesmíssima prática, inadequada conduta de puto ofendido ou em ferrenha e indissipável birra. Desloquei-me, a mim e ao trolley cujas rodas já se arrastavam pelo chão, até à entrada principal da estação de Sta. Apolónia sem me dignar a olhar para trás e sabendo perfeitamente que não te encontravas a meu lado. Então parei e esbocei um sorriso tão tolo, querendo fazer passar que nada se passava, que logo o desmontaste na tua mente, o que se tornou mais do que perceptível no teu semblante. Sabia que não conseguiria fazê-lo vingar, mas a vã esperança de que o facto pudesse vir a suceder justificou ter ignorado, e quiçá ofendido, a tua arguta inteligência. Mantive-me fiel ao meu sorriso extemporâneo com a finalidade de não me tornar mais ridículo ainda, impedindo-me do absoluto desmoronamento exactamente ali. Despeguei-me da bagagem que transportava e assomei com ambas as mãos ao teu rosto, beijando-te delicadamente, e com todo o meu amor, os lábios; nada agora em mim mentia. Permitiste que a tua pasta escorregasse dos teus dedos até ao chão e abraçaste-me com vigor. Um beijo não te bastava. Muito menos a mim.
Miúda, a cada dia que passa noto a minha escrita, a sua qualidade ou falta dela, mais tacanha e mesquinha. A realidade é que me encontro bem longe do meu melhor. Já tu… Quando escreves, mesmo que o faças esmagadoramente num registo técnico, fluem-te as palavras com tremenda naturalidade e graça; e espírito. Reconheceria a assinatura do teu verbo em qualquer texto produzido pela tua pena. Vive no teu sangue e só lamento que não passes com maior frequência para outros registos, outros universos que dominarias tão bem… sei que sabes disso, porém não insisto contigo. Enfim, és muito melhor do que eu; melhor apenas, quando me encontro nos meus dias. Não te consigo explicar porquê, porque estou tão banal e ordinário, não só na forma mas especialmente nos conteúdos, conteúdos esses ora pervertidos por uma criatividade imaginativa estagnada e propensa ao definhamento. Talvez seja de todo o cansaço que se acumula, do uso excessivo do discurso técnico, do peso da tua ausência, da urgência em terminar a redacção do trabalho que me poderá atribuir o derradeiro grau académico. Stress. Ou desculpas, meras e incipientes desculpas para uma falha determinante que se instalou e que me recuso a todo o custo em reconhecer. Seja lá como for. Virá o dia em que conhecerei de certo uma resposta mais conclusiva e esclarecedora. Mencionei em texto pretérito que haveria de dar-te a conhecer este meu espaço, que reservo por variados motivos, tantos que nem vale a pena elencar nenhum. Reconheço que estou cada vez menos certo que esse acontecimento venha a ter lugar. Podem afirmar que tudo isto trata de uma espécie de competição e que se to não dou a conhecer é exactamente por me sentir aprioristicamente derrotado. Se um dia te contarem isso não acredites. São tretas de quem não nos quer bem. Vivo contigo numa relação partilhada, não numa corrida a disputar lugar medalhado. Miúda… orgulho-me demasiado de ti para que pudesse transmutar-me numa pedante criatura invejosa, coisa hedionda que só me desperta asco em todas as extremidades nervosas. Vou desligar a máquina: o mundo não pára para observar os meus devaneios. Sabes, fazes-me falta. Mais que muita.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
Já cansa
Compreende-se perfeitamente que uma pessoa se sinta física e mentalmente desgastada aquando de esforços adicionais que envolvem ambas as componentes. Agora andar há mais de duas semanas derreado parece-me um absoluto disparate. Exaustão? Burnout? Stress cumulativo? Assim a paciência impacientemente se esgota...
Nota: marcar consulta para o senhor doutor.
quinta-feira, 16 de agosto de 2012
existencialismos
- O inferno são os outros.
- E tu no meio deles.
"A vida como nós a conhecemos acabou, e, no entanto, ninguém é capaz de entender o que é que a substituiu."
'no país das últimas coisas', paul auster
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
lucidez
Lucidez. Qualidade e/ou propriedade de espírito esguia e fugidia que só se me apresenta nos momentos mais inadequados mantendo-se omissa pelos restantes. Paciência.
sábado, 28 de julho de 2012
Distâncias
Quinta-feira. Tiveste que voltar
hoje ao Porto. Afinal, é nessa cidade que desenvolves a maior parcela do teu
trabalho. Partiste cedo, ainda de madrugada, pelo que a tua consciência optou
por ditar que não me despertarias. Tenho pena que assim decidisses, preferia
ter visto o meu sono interrompido, mas de qualquer forma não censuro o teu
juízo. Fizeste o que entendeste melhor, o que o teu tino considerou como
decisão acertada, e no teu lugar provavelmente teria agido do mesmo modo. Pelas
oito e pouco da manhã, sem ainda ter consciência concreta da hora, sentia-te
presente, o que era falso. O teu cheiro ainda emanava forte dos lençóis, do
travesseiro, único na cama porque eu há muitos anos que o dispenso. Era este o
engodo que me levava a acreditar que a tua ausência seria coisa nas mãos do por
vir. Logo percebi o erro a que se tinha entregue a minha percepção. O teu
lugar, opostamente ao que acontecia no meu, estava frio, demonstrando por a mais b que havias deixado o conforto da cama fazia muito.
Disseste-me na véspera que
pretendias abalar antes das seis, pelo que assumo que te terás erguido poucos
minutos após a quinta badalada da madrugada. Já conhecia a sensação em que me
via envolto, nada tinha de inédito, não me era novidade. Como a cama é enorme.
Como é enorme sem ti. Perdia, inclusivamente, grande parte do seu sentido,
transmutando-se num monstro deslocado face ao nosso universo. Talvez por isso
tenha saído dela o mais rápido que consegui, talvez por isso tenha despertado
de uma forma tão imediata e brusca. Se não estava disposto a perder a réstia do
teu cheiro, menor era a disposição de partilhar aquela cama com o vazio gélido
e impessoal que tão mal te substituía. Entrepunha-se entre o nosso viver cerca
de trezentos quilómetros de distância e uma mão cheia de milhares de metros em
altura. A princípio, estou certo que na sexta-feira passada, dizias-me que
levavas o carro. Domingo, contudo, constatei que marcavas uma passagem aérea,
ida e volta, num site de viagens
alojado na Web. Fiquei surpreso, não
é teu hábito usares esse transporte que rasga os céus nos teus périplos entre
Lisboa e Porto – assim sei porque mo contaste tu, somos ainda demasiado jovens
quando falados no plural; e acredito em ti, sim, acredito, ternura. Pelas minhas
contas deves estar a sobrevoar a área metropolitana do Porto. Sim, recordo bem
que estava prevista a saída da Portela pelas sete e quinze. São tão somente
cerca de vinte minutos de voo que separam Lisboa do Porto. A estes há que somar
aqueles que decorrem enquanto a máquina de asas aguarda pela sua vez,
fazendo-se por fim à pista e daí arremessar-se para as nuvens; e aqueloutros,
que antecedem a aproximação ao aeroporto de destino, a aterrizagem em si e o
parqueamento do gigante pássaro metálico. Tudo isto em uma hora, menos de uma
hora. Era esse o tempo que nos separava, longe, contudo, da real distância
física a que te sentia. Podias ter-me acordado, digo, despenteado, com ar
labrego e voz de sono, alto para o espelho que olhei de esguelha antes de buscar
a escova e a pasta de dentes. Repeti, dizendo-o outra vez, agora notoriamente
irritado por a máquina da escova me transmitir com um zumbido ténue que precisa
da bateria recarregada. Paciência, vai assim mesmo, molhando a extremidade da
escova na água que escorria da misturadora do lavatório. Ou não, ou não.
Afirmei em pensamento a fim de evitar que cuspisse o espelho com saliva e
dentífrico, facto inevitável se me decidisse por me exprimir em palavras
faladas. Limpar o espelho seria enfadonho e o pior, sei-o bem, é que não o
limparia pela preguiça que a tua ausência tantas vezes motiva em mim. Se
soubesses quantas vezes limpo, arrumo, aprumo de forma forçada e em tempo
limite… até tu perderias essa tua calma sobranceira que tanto admiro. Devia
ter-me acordado, bolas, rosnei entre dentes enquanto manipulava, em simultâneo,
a misturadora do duche do polibã. Nada. A água sempre fria. Desagradado,
arrastei-me até à cozinha, nem me acordou e desligou o esquentador, pontuando o
final do pensamento com uma expressão vernácula. Abri a portinhola, fingindo
ser continuação do armário que guardava toda a espécie de loiças e mais algumas
que eu ignorava, e protestei ao encontrar o manípulo do gás cortado.
De retorno à casa de banho
baixando a totalidade do manípulo, cortando o fluxo de água que deixara a
correr em catadupa. De novo para a cozinha e com o esquentador defronte
permiti-lhe que se alimentasse de gás, rodando a torneira para a posição on. Com força desmedida puxei, incisivo,
a alavanca até ao seu limite, para cima e para a minha esquerda. Expirei,
danado sabe-se lá com o quê, brusca e ruidosamente, com os lábios semiabertos a
fim de tornar este expediente mais célere e, ainda que estivesse só, mais
dramático. O vapor saído da torneira indicava que estava tudo pronto. Voltei a
encarar o espelho. O negro papudo por debaixo dos olhos era inconciliável e
informava-me que andava a exagerar quer do físico como da mente, sendo,
contudo, absolutamente ignorado por mim, sentimento que reiterei com um
encolher de ombros rápido e como que indiferente, abandonando depois e sem
demora a imagem reflectida no espelho. Porque raio a água estava tão quente? Tu
havias de gostar. Gaita, não me podias ter acordado, sem abrir a boca que a
água entretanto começara a jorrar pela minha cabeça, corpo abaixo, até se
escoar pelo ralo. Encostei ambas as mãos aos azulejos húmidos e
desconfortáveis, suportei o meu peso com os músculos dos braços.Com a cabeça a
pender para baixo e com a água, que caía de cima, a massajar a nuca partilhei em
boa voz com qualquer fantasma que se pudesse encontrar na casa de banho: não
podias ter-me chamado? Pouco importava. Estava feito e para além de qualquer
reparo. De nada valia estar a especular sobre cenários que nunca poderiam ter
força para se impor ao determinismo do que já foi. Ainda com a cabeça pendente,
esforçando-me por adquirir as minhas faculdades que nem o choque térmico tinha sucedido
em arrancar à torpes, vacilava-a, com o vigor possível, em direcções opostas,
num significado que não, que não percebia, que não compreendera a tua atitude;
que, no íntimo, era incapaz de aceitar. Haveria de acordar em conveniência,
haveria de ficar embaraçado com a mescla de sentimentos de raiva e fúria e mais
ainda de abandono e de despropositado ciúme que permitira ultrapassarem os
mínimos razoáveis do meu discernimento. Só não o sabia ainda. Para mim, o dia
mal principiara e, num primeiro entendimento, não propriamente da melhor
maneira. Partiras, era isso o que de facto me afectava. Não suportava a ideia
de uma quinzena de ausências, toscamente interrompidas por telefonemas quase
sempre curtos e pelos contactos online
via webcam onde o à vontade era
escasso por motivo de constrangimentos que eu próprio desconheço; nunca fui
bom, nem nunca fui adepto, das interacções no universo do espaço virtual com a
pessoa que, comigo, partilhava da mesma cama. O computador, nada mais do que
uma máquina, era um intruso desajeitado e indesejado no nosso leito. Céus, como
odeio falar-te à distância.
Rodava no carro rumo a Cascais.
Não te ligara nem tu a mim. De qualquer forma, embora mais do que certo que não
telefonarias, imaginava-te já numa sala qualquer do departamento da faculdade,
fazia figura de tolo com o auricular sem fios enfiado na orelha direita – nunca
o uso à esquerda quando conduzo, evitando a panóplia de ruídos pelos quais seria
assaltado no caso de, por algum motivo, como o de acender cigarros que aos teus
olhos é um acto criminoso que auto-inflijo, acabar por descer o vidro que
complementa a janela – agarrado e fazendo apelo à piedosa ideia do talvez.
Estacionei o carro e com o motor ainda a consumir combustível olhei o mar. Pela
primeira vez no dia experimentava uma sensação de profunda calma, à qual me
entreguei sem obséquios, recostando-me no estofo do automóvel após ter rodado a
chave para a posição de desligado. Assim permaneci imóvel, com o auricular a
começar a tornar-se incómodo, durante prolongados minutos. Os meus únicos
gestos devem ter-se limitado àqueles estritamente necessários para retirar os
óculos escuros do rosto a fim de contemplar, ou assim o pensava, com maior grau
de pureza o espectáculo que assomara aos meus olhos e que penetrara cómoda e
confortavelmente em todo o meu ser. Por momentos, estava em paz. Com o meu
mundo, com o teu, com o nosso, com todo o demais que nos rodeia.
Quebrado o feitiço do mar, sem o
qual juro vezes sem conta que não conseguiria viver, recoloquei os óculos
escuros – um dos cinco pares que guardo segundo uma ordem precisa no topo de
uma estante de metro e meio que temos encostada numa parede do nosso quarto,
por cima das credenciais que vou coleccionando de congressos e afins; onde
terás tu as tuas? – percebo agora que só me recordo de as ver a pender no teu
peito, quase sempre enlaçadas no pescoço, pontualmente a trilharem-te a roupa à
força de uma mola mais ou menos dentada, conforme o critério das respectivas e
distintas comissões organizadoras, sorrindo, há tanto que desconhecemos daquilo
que chamamos nós, mais preciso, cogito, de cada uma das singularidades que em
unidade constituem, estruturam e dão razão de ser a essa tal coisa, a esse
fenómeno, o nós. Observo o retrovisor que me espelha a informação de estarem já
os meus olhos protegidos não da claridade parida por um sol veraneante radioso
mas sim da intrusão dos olhos dos outros que lhes possibilitam a percepção
visual, e não só, do espaço em que se encontram envoltos. Sou de facto egoísta
e hedónico, tenho como prazer ler os eventuais significados que o olhar dos
outros transmitem, contudo reservo-me a barrar-lhes possibilidade semelhante. A
mão esquerda faz a porta do automóvel bater com força suficiente para se
encerrar convenientemente, os dedos da mão direita, para além de segurarem
firme a mala com o netbook, o
gravador digital e uma moleskine de
bolso a dois terços preenchida com a minha letra hieroglífica, apertaram o
botão apenso à chave trancando o acesso ao veículo por desconhecidos, ou assim
se espera que seja. Há uma entrevista, mais uma, a conduzir. Volto a olhar em
redor como faria um predador no seu habitat de caça. Desço os degraus
conducentes ao paredão da praia, o olhar atento ao cinzento do seu cimento, já
mais do que uma vez, porque distraído, me ia estatelando por elas.
Inconscientemente, levo uma mão a um joelho, ainda dorido do derivado da pancada
seca num rígido degrau. Defronte o areal e depois o mar, que se espraia
incansavelmente na areia. Rodo o corpo para a direita e prossigo pelo paredão.
Quinze dias sem ti. Partiras sem te importares em me deixar nos lábios com o
sabor do beijo teu. Uma eternidade, para quem desdenha da espera e que com ela
convive desagradavelmente e sem armistício. A entrevista. Concentra-te. Já
basta teres que descodificar no discurso o que foi dito e não dito, os
silêncios e as palavras verbalizadas com vincada emoção, isto e aquilo, o eu
sei lá que mais. Não entres na empreitada de tentar analisar os códigos de
discursos que pertencem somente, e solenemente, à tua esfera pessoal, não é
trajecto que queiras percorrer, pelo que me esforço em alinhar o raciocínio. Eu
teria feito o mesmo. Exactamente, sem tirar nem pôr. Seguiria caminho sem
perturbar o teu sono. Porque voltava a pensar no mesmo? Por ser verdade, e
certamente sê-lo-ia, ou para justificar, acalentar, mitigar a tua
intranquilidade de espírito? Voto na última. Giro o relógio para confirmar que é
hora certa. É. Ainda antes de avançar, coloco ambos os telefones em modo de
silêncio, confrontando-me igualmente com a constatação óbvia de que não havias
tentado contactar-me. Retiro os óculos, a etiqueta, quer do senso comum como
aquela derivada do métier, obriga a
que olhe o meu interlocutor em circunstâncias em que a igualdade é tida como
pretensamente adquirida – o que na realidade não consubstancia qualquer verdade
de facto, mas a ilusão é o que basta, pelo menos a mim nas minhas intenções
mais imediatas do momento. Penduro-os, por uma haste, no pólo. A poucos passos
de mim a entrada do espaço em que me relacionaria face a face com o dito
interlocutor. Peço uma água com gás fresca, hoje com copo, sim: a tal etiqueta,
pois bem. Deixei-te à porta, não podias entrar, são mundos diferentes, como
sabes.
Sensivelmente hora e meia depois
e caminhava as mesmíssimas escadas, agora no sentido inverso. Obtivera o que
pretendia. Aqui não há bem nem mal, há simplesmente o factual e é com isso que
trabalho, ponto final. O sol feria-me os olhos, os óculos pendiam na boca,
sustidos pelo terminal de uma haste entre dentes. Feria-me também a crua
constatação de que no entretanto não tinhas ligado nem enviado uma mensagem de
texto, só uma havendo, do banco, a aborrecer-me com umas tretas quaisquer que
promoviam qualquer coisa a que não prestei atenção a não ser, sem propósito
manifesto, que remetia para um upgrade
do cartão de crédito. O motor vibrava e a marcha-atrás engatada. Qual o meu
espanto? Absolutamente nenhum. Agira do mesmo modo, permanecendo incontactável
e não existente no teu mundo, nada fizera no sentido de escutar a tua voz ou,
pelo menos, de te ler num brevíssimo texto característico do serviço de
mensagens curtas. As quatro rodas rolavam no alcatrão da marginal, já conhecido
por mim de cor, com destino não totalmente definido. Talvez para o Guincho.
Não, antes a Capitania, depois a cidadela, só então o Guincho. As horas faziam
a manhã avançar, numa marcha plácida proporcionalmente inversa à
intranquilidade em que imergira, esgotado de contra ela batalhar: encontrava-me
engolfado e nada agora havia a fazer que obstasse a esse estado absorto e
embrenhado, conheço-me bem. Limitei-me a abusar do pedal do acelerador e a
aumentar significativamente o output
das colunas do rádio, como procedo, com poucas excepções, em situações desta
natureza. Concentrado na condução e a pensar no que fazer nos locais de
destino, tentava com a convicção possível arredar-te da mente. Precisava de ti.
Precisava de ti que não estivesses presente, que apartasses. Os graves da
música embatiam como ondas do mar no meu peito, prosseguia com a tua ausência.
Ter-me-ás beijado antes de seguires para ir voar, estando eu no mundo dos
sonhos que o sono desperta? Era um minguo consolo a que me apegara antes de te
deixar abalar da minha consciência.
Regressei a casa após o ocaso,
por opção deliberada. Jantara algures em Carnide, a ideia de tomar a refeição
em casa sem ti pareceu-me descabida e sem propósito, sem proferir uma palavra
que fosse excepto as essenciais para solicitar uma mesa, um prato, uma bebida,
um café, a conta e para agradecer um serviço que, bem vistas as coisas,
adquirira, pagando-o. Atirei os óculos, arremessados com desdém, para cima da
mesa da sala de estar. Agradar-te-ia imenso, este meu gesto. Contudo, o que
importava? Não estavas lá. Assapei-me no sofá ligando, de imediato e
instintivamente, o televisor, saquei o netbook
da sua minúscula pasta, demasiado preguiçoso para agora me levantar e ligar o
meu portátil a sério, como o denomino por oposição ao lerdo netbook, apenas eficaz, e bastante, para
trabalho de campo, com o intuito de verificar a caixa do correio electrónico,
da outra, do correio de papel, nem me ocorrera sequer abri-la, e logo que
(in)satisfeito baixei-lhe a tampa, pousando-o atabalhoadamente na mesa que
suporta um pequeno candeeiro e uma foto nossa, acompanhada por uma tartaruga de
pedra, um mocho de cristal, mais uma jarra de tipo solitário despida de
qualquer ornamento – tudo composto pela tua mão. Durmo aqui hoje,
confidenciei-me. E porque não o fazer? Recordava a imensa cama que para meu uso
exclusivo me parecia aberrante, desprezando-a com um movimento que os meus
ombros, em concordância, acompanharam. Fitei a televisão, sem a ver. Peguei no
telemóvel mas desisti de levar adiante o projecto de ligar-te. Deixei-o pender
até à almofada e, então, desprendi-o. Deitei-me atravessado a todo o
comprimento do sofá, encolhendo as pernas. As pálpebras cederam e tu voltavas,
de novo forte e cheia de ímpeto, a mim. Abracei-te no meu pensamento. Era-me
confortável voltares a ser o centro das minhas atenções. Suspirei. Sinto a tua
falta, disse-o bem baixinho. Sei que o sabias. Sei que me escutarias. Voltei a
encher o peito de ar e a expirá-lo de uma só assentada. Ausente, vives em mim.
Não tinha sono nem estava particularmente cansado. Padecia apenas da tua
presença ausente.
Mantinha os olhos fechados quando
a síntese do dia se realizava, virtude do trabalho dos meus neurónios aos quais
não havia encomendado a tarefa, discorrendo como imagens projectadas em
catadupa numa tela. Surgiu espontânea provavelmente com o propósito ou o
intuito de pacificar as hostilidades que havia despoletado em mim e contra mim;
desempenhava os dois papéis em simultâneo, papéis em regra assumidos por
actores distintos e concorrentes que pouca simpatia nutrem um pelo outro e que,
ao fim e ao cabo, acabam por se considerar inimigos, vociferantemente engajados
em práticas belicosas subjacentes aos seus, amiúde, ridículos antagonismos. Ao
invés de me aborrecer gozei comigo, questionando-se no meio de silenciosas
gargalhadas labregas se estaria a ficar esquizofrénico ou bipolar, sabendo que
na realidade nada disso acontecia e que tal se devia apenas ao labor do meu
cérebro empenhado em me defender até de mim próprio. Sentei-me, puxando os
cabelos para trás, com os dedos da mão formatados como uma, ainda que tosca,
escova de pentear. Puxei de um cigarro que prendi com os lábios. Com o isqueiro
amarelo-torrado na mão, sempre tive um fraco pelos isqueiros com tonalidades
pindéricas e que as demais pessoas hesitavam em escolher para si, estaquei os
movimentos impedindo-me, dessa forma, de acender aquele cilindro que dizem que
mata, provoca o cancro, avilta o esperma, prejudica os demais e sei lá o quê.
Contudo, a minha motivação nada tinha que ver com esses ditames assumidos como
axiomas dignos de venerável aceitação sem apelo nem recurso. A razão era única
e sei-a bem. Repugna-me o que chamo de cheiro a tabaco morto e uma vez que me
dispusera a pernoitar na sala dispensava essa sensação de náusea e nojo que
certamente se prolongaria noite adentro. Coloquei o cigarro entre dedos,
semi-dobrados, com o filtro voltado para o exterior. Silenciei o televisor sem
sequer me ter dado ao trabalho de para ele erguer o olhar. Acendi o candeeiro
da mesinha adjacente ao sofá apagando, por seu turno, a luz provinda das
lâmpadas do candeeiro de tecto. Dirigi-me para a cozinha, encerrando a porta à
minha passagem. Vi-me forçado a três tentativas até ser bem sucedido, há já
algum tempo que me prometera arranjar aqueles puxadores, mas como muitas outras
também esta promessa permanece ainda encerrada na gaveta das minhas boas
intenções. Iluminei o exaustor por cima de um fogão que aos meus olhos me
parecia merecedor de reforma, pese embora não conte ainda assim tanto tempo,
mesmo em idade de fogão. A luminosidade que aclarou a cozinha era ténue e quase
tímida, em conformidade com a minha disposição. Não fora por obra do acaso que
preterira as irritantes e agressivas luzes de tecto, tradicionalmente afectas
ao imaginário popular do que têm que ser luzes de cozinha, pela plácida
claridade proporcionada pelas duas lâmpadas incrustadas no exaustor. Obriguei a
deslizar, contrariada, uma das janelas. Por esse espaço observava com melhor
discernimento o negrume que se instalara nesta parcela do mundo e que apenas
era interrompido pelo brilho dos candeeiros de rua, coadjuvados por
interpelações luminosas espaçadas sem qualquer harmonia de outros fogos da
vizinhança e, claro está, pelo terno cintilar das estrelas ancoradas no manto
celeste. Agradou-me igualmente a suave e fresca brisa que irrompia pelo espaço,
em particular quando me tocava o rosto, provocando pontuais arrepios que se
espraiavam essencialmente pelo pescoço e pelos braços. Tornei a colocar o cigarro
na boca, após o qual repeti o movimento de puxar os cabelos para trás.
Interrogo-me porque danada razão farei eu isso, que cada vez tenho menos, menos
cabelo. A chama do isqueiro bamboleava ao sabor da brisa e fez arder o tabaco
do cigarro, cessando-se a partir desse momento e retornando o objecto a gás ao
bolso mais pequeno das minhas calças de ganga meio encardidas. O fumo expelido
pela boca vagueava incerto até se dissipar no infinito da noite, semelhante a
uma tímida imagem de nevoeiro que se esmorece languidamente sem que os nossos
sentidos consigam acompanhar devidamente esse aparentemente simples porém
complexo processo. Repeti o gesto algumas vezes. No entretanto, o meu cérebro
não se encontrava ocioso. Bem pelo contrário, despendia a maioria das suas
energias a pensar em ti. Como estavas longe. Contudo, apenas a pouco mais de
uma hora de avião; ou menos. Como estavas longe. Essa distância, letárgico
debrucei-me sobre as mais variadas hipóteses, dever-se-ia aos quilómetros que
entre nós se entrepunham ou seria resultado de uma clivagem contada noutro tipo
de medida? Larguei o couto do cigarro num pequeno cinzeiro circular de vidro,
possivelmente mais velho do que eu, surripiara-o do espólio de tralha de casa
dos meus pais, ao qual acrescentara uma ligeira quantia de água entendendo que
a brasa a fumegar no cigarro vorazmente consumido se apagasse de imediato,
evitando que mais fumo se espalhasse pela cozinha e restantes divisões do
apartamento, mitigando o nojento odor que um cigarro acabado de apagar exala.
Coloquei de imediato outro novo cigarro na boca, como se esse gesto acelerasse
a minha capacidade de pensar, concorrendo para um célere desvelar do que não
conseguia, por jeito algum, desvelar. Mera ilusão, nenhuma velocidade era
adicionada àquela que era natural das minhas sinapses. Não o acendi. Deixei-o
estar, a pender dos lábios, ainda que lhe tenha suavemente trincado o filtro
quando instintivamente me deu para cerrar os queixais. Não seriam os
quilómetros uma desculpa adequada e racionalizada para justificar o
distanciamento que vivia e experenciava com angústia? Uma metáfora, sim.
Estaríamos nós a permitir, ou até mesmo a participar activamente, que o abismo
nos cingisse? Foi o clique que precisava para ir buscar o isqueiro e acender
este outro cigarro. Conservei o fumo inalado por quanto me apeteceu suster a
respiração. Deseja eu suster o mundo, o nosso mundo, colocá-lo em pausa? Expeli
o fumo com o olhar perdido a contar estrelas e desmotivado com a plausibilidade
da minha última interrogação. Tossi, mais por me ter engasgado com a minha
própria saliva do que propriamente pelo efeito, nefasto, já o sei, do fumo que
atravessara em dois sentidos a garganta concomitante arranhada. Cotovelo
assente na pedra do parapeito e o polegar a suster, pelo apoio na sobrancelha,
a cabeça. Pois, afinal estava mais perdido do que julgara. Estava esclarecida a
minha intranquilidade, lutava por nós, e comigo, sem de nada te informar; para
quê incomodar-te com os meus pensamentos neuróticos se nem eu sabia o que eles
me pretendiam transmitir. A dúvida instalara-se ramificada. O cigarro foi de encontro
ao cinzeiro. Permaneci estático a olhar a lua lá fora, em crescente, apático e
sem reacção.
Temia pensar ainda mais sobre o assunto. Doía-me pensar. Como gostava que a nossa casa pudesse oferecer vista para o mar…
Temia pensar ainda mais sobre o assunto. Doía-me pensar. Como gostava que a nossa casa pudesse oferecer vista para o mar…
quarta-feira, 25 de julho de 2012
terça-feira, 24 de julho de 2012
o espelho não mente (?)
"Take a look at my girlfriend
She's the only one I got
Not much of a girlfriend
We never seem to get a lot"
('Breakfast in America', Supertramp)
Não se encontram propriamente na minha lista de musts. Todavia, sempre apreciei a entrada da letra desta música em particular. Por curiosidade, fui repetindo e reproduzindo essas mesmas palavras, ou outras que similares, com uma irritante e constante cadência a todas as minhas (ex-)namoradas, ou pelo menos àquelas que de facto são dignas de ainda permanecerem na minha memória - daí se infere a sua incontestável prestação em distintas representações no decurso da minha vida; outras, poucas e votadas a um esquecimento perene, provavelmente nunca usufruiram de estatuto nem de solenidade merecedoras do elogio. Para meu desagrado, e porque não desilusão?, as realidades com que me confrontei acabaram inevitavelmente como corolário do sustentado, realizando-se, em certa medida, a profecia.
Ao leitor mais incauto, já prestes a arremessar a primeira pedra por indignação ou devido a eventual leitura de um chauvinismo inerente à minha pessoa, sugiro que tenha um pouco mais de paciência e compreensão, já que nada é tão simples ou superficial como indicia a mera aparência: é que a isto, a funcionar, aplica-se-lhe o denominado efeito de espelho. Quer isto dizer, exactamente o princípio da reflexividade. De outro modo, recorrendo a uma construção frásica alternativa, quando sugiro a aplicabilidade desta qualificação tipológica e adjectiva implico-me reciprocamente na mesma. Em súmula, o que afirmo, por vezes a título de gracejo e outras numa tonalidade literal, ou mesclando ambas, remete igualmente para a consciência, diga-se em abono da verdade que bem manifesta, de que eu próprio o sou, com o verbo no masculino. Retomemos o espelho. Quando lhe imputo uma determinada categorização, e.g., not much of a girlfriend, obtenho de imediato o feedback que aponta, me aponta, exactamente igual, invertido, neste caso, somente o que remete para o género; de longe não o melhor dos namorados, também eu omisso no que respeita aos atributos e qualidades mormente buscadas pela percepção ideal-típica do papel de valentino.
Muito apreciaria não mais (ter de) fazer uso dessas palavras. Talvez. Porém, desta, o cepticismo leva-me de vencido. Mas não inevitável ou fatalmente derrotado.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
essencial ou acessório?
Vamo-nos auxiliando nos nossos projectos profissionais. Tendemos a olvidar tudo o que remanesce, inclusive, ou principalmente, o mais importante. É impossível encontrar equilíbrio na perfeita imperfeição do ser humano; nossa condição, nosso pecado capital, nossa essência.
sábado, 21 de julho de 2012
prioridade (não?) distorcida
Estou cada vez melhor no meu trabalho. Concentrado, enfocado, pragmático, alheado do demais e até acintoso. Progressos conquistados. Maior confluência com o objectivo. Mecânico. Pior pessoa.
quinta-feira, 19 de julho de 2012
Perspectivas
Hoje, por fim, foi o último dia com lentes prismáticas. Já ofereci as minhas boas-vindas às de recorte regular. Satisfeito, sim.
sábado, 14 de julho de 2012
lost & found
Para ti.
"If you walk away, walk away
I walk away, walk away
I will follow
I will follow"
"If you walk away, walk away
I walk away, walk away
I will follow
I will follow"
domingo, 8 de julho de 2012
fragmentos
- Quando voltas?
- Talvez nunca tenha existido.
"O desejo de ordem é ao mesmo tempo desejo de morte, porque a vida é perpétua violação da ordem."
'a valsa do adeus', milan kundera
sexta-feira, 6 de julho de 2012
entre a emoção e a razão
Sétimo piso, o ‘chefe’ a aguardar.
Melhor, seria eu a aguardar por ele. Como de costume estava com alguém no seu
gabinete. Não lhe ouvira a voz, mas fora informado que estava reunido com
alguém, alguém esse de que não guardo a mais pálida recordação. Sentado no
sofá, olhei em redor. Tudo igual por ali, pelo menos parecia-me. Extrapolei,
considerando que o normal é que tudo se mantivesse igual por toda a Lisboa.
Sabia-me a exagerar, contudo essa sensação montada a partir de uma
generalização dúbia e grosseira era do meu agrado, pelo que a deixei tal qual instalar-se
a seu conforto no meu pensamento. Enquanto mantinha o olhar, agora algo perdido e em devaneio, a
cruzar o espaço que me enleava, martelava os dedos da mão direita num caderno
de notas, curiosamente adquirido aquando da deslocação à cidade do Porto: há
quem lhes chame, a estes fenómenos, sinais, predilecções de um destino que nos
ultrapassa; outros preferem dizê-los signos, cujos significados e significantes
devem ser criteriosamente analisados, decompostos e categorizados; eu opto por
denominá-los por acaso, conceito que tomo de empréstimo a Boudon e que me ficou
caro desde os tempos em que frequentava o curso de licenciatura. Reparei no
ruído provindo do contacto entre as extremidades dos meus dedos e a capa do caderno,
correlacionando de imediato este batucar com o estado de ansiedade que se
apoderara da minha vontade. Nada de anormal quando estamos incertos se o ‘chefe’
manifestará aprovação face ao trabalho, ainda que muito parcial, entregue ou
se, pelo inverso, discorrerá sobre as mais minuciosas incorrecções com que se
deparara ou até mesmo se bradará que o que fora entregue nada mais era do que
um leque de banalidades superficiais, de trivialidades mal trabalhadas e
desajeitadamente recolhidas num processo em que nada se ganhara, antes tendo-se
perdido tempo precioso acrescido por um desperdício de qualidades que me vai
reconhecendo em uma ou outra ocasião. Sorri por dentro, como se costuma dizer –
Como será que o nosso organismo pode sorrir por dentro? Não será uma tolice,
uma patranha da pior espécie, inventada por poetas populares inebriados pelo torpor
letárgico provocado pelo consumo de irresponsáveis medidas de álcool entre
tascas sombrias e casas de pasto de duvidosa integridade? Em resposta a este
raciocínio, voltei a sorrir por dentro, desta feita forçando a racionalidade a
partilhar a sua sobranceria com o espírito folclórico. Afinal sorrir por dentro
é belo, para além de que soa bem. Sorrir por dentro, como se alma manifestasse
o seu júbilo sem que o corpo, por gestos seus, a denunciasse.
Entretanto, da sala do emérito ‘chefe’
escutavam-se, ainda que muito ao fundo, duas vozes cujo tom se elevara e que
pareciam engajadas numa dança ritual de quem se despede e que canta até outro
dia que por hoje finda-se o tempo. Por outras palavras, a reunião estava
concluída e agora cumpria-se a etiqueta das boas regras. Não tardaria muito até
que ouvisse as palavras do senhor emérito, cumprimentando-me, convidando-me a
entrar e desculpando-se pelo atraso que teima em persistir em quase todos os
nossos encontros. Antes, dirigi as minhas cogitações na tua direcção. Sentia
uma irresistível tentação de procurar ao senhor emérito algumas informações
tuas, particularmente dos tempos em que ainda não te conhecia, porém sustive-me
já que estava convicto de que tal façanha poderia ser do teu completo
desagrado. Estranho, foste tu primeiro a buscar informações sobre mim de forma sub-reptícia,
esclareça-se, investigaste o meu passado na esfera do trabalho, o que eu havia
produzido ou aquilo que por inabilidade me havia redondamente esquecido de
produzir, e disseste-mo descarada e abertamente na cara, frente-a-frente, finalizando
com um espero que não se importe, caso se importe, então as minhas desculpas,
até me escutares a dizer-te não se preocupe, não tem qualquer importância, com
um sorriso tão estúpido quanto tolo cinzelado no rosto, irremediavelmente desarmado
pelo tão simples facto da tua presença. E ali estava eu a debater-me com uma
crise ética, a digladiar-me com princípios morais, a esgrimir considerações
sobre atitudes correctas e aquelas outras que nem por isso. As pessoas são
estranhas. Não podemos confiar nelas, se bem que são as únicas em quem podemos
confiar. Hábil e estranho paradoxo, contudo nada de inverdade em si. É assim
mesmo, a estranha – mas tão deliciosa – condição humana; logo Arendt se assomou
aos meus considerandos em silêncio, que mulher bestial deverá ter sido, para
mais numa época em que muitas portas estavam ainda teimosamente enferrujadas face
à pertença de género no feminino, se bem que tal situação decorresse já em pleno século XX…
faleceu antes de teres sido dada à luz, concluí sem no entanto saber o porquê
ou a relação desse facto com os acontecimentos que eu e tu vivemos
presentemente no nosso presente. Ergui a face para a porta acompanhado com os
globos oculares os movimentos muito mais pragmáticos daquele homem que admiro
acima de quase todos, estejam ainda a rodar pela terra ou tenham sido alimento
de vermes há vários séculos passados, e que amistosa e amigavelmente me
convidava a entrar, visivelmente entediado, contudo coisa que sabia não
dever-se nem à minha presença nem aos motivos da minha visita. Estava mais do
que decidido: não lhe perguntaria nada sobre ti, nem mesmo se estivesse no seu
poder uma fórmula de desvendar os mais misteriosos segredos de uma vida inteira
– estava a deixar-me arrastar pela minha vertente dramática, que tanto adora
fazer uso da sua pseudo-prodigiosa imaginação, quando o que necessitava era de
concentração e da minha máscara de actor no meu métier. Entrei no gabinete,
deixando-te à porta sem a menor das hesitações, apertámos as mãos e finalmente
poderíamos opinar sobre aquela parcela de um trabalho a e por concluir.
Pouco seria o tempo à nossa
disposição, numa questão de quinze a vinte minutos teríamos que estar numa sala
de outro edifício: um para introduzir um conferencista basco de renome, outro,
eu, para assistir à palestra. Ainda assim, nesta míngua de tempo, ousaste
tentar aflorar o meu pensamento. No entanto, sem piedade nem remorso, extirpei
esse assomo da minha existência ali naquele momento. És teimosa, sabes? Bela,
cândida e plácida; tenaz, decidida e vigorosa, sempre com o véu das primeiras a
cobrir estas últimas. És mesmo bem teimosa, sabes? Já to disse. Não te
desculpaste com lugares comuns do tipo é o meu feitio. Assumiste e retorquiste:
somos os dois, embora de maneiras bastante distintas. Tens razão. És tão
teimosa. Mea culpa, também o sou. Sorriste e beijaste-me, puxando-me com os
teus braços provocando o toque mimoso dos nossos corpos ainda vestidos. Foi um
beijo de verdade, não foi um beijo de tréguas. És teimosa, mas tens dificuldade
em mentir e até o teu corpo se ressente quando o fazes, comunicando na sua
linguagem que algo incómodo o atravessa. Não mentias, não. Foi um beijo de
verdade. E os teus braços, algo magros, como os meus, capturaram o meu torso
para que também os nossos corpos, à sua maneira, se beijassem. Não tinha muito a
acrescentar, aliás nenhuma crítica de monta, o que aliás me deixou enormemente
satisfeito. Queria apenas sugerir que enriquecesse o trabalho com isto e aquilo
e mais aqueloutro, sugestões brilhantes, admita-se, dignas de um homem ao qual
reconheço valor e mérito muito para além da mera escala profissional – sinto-me
orgulhoso por me ter aceite no seu círculo, jamais se dirigindo a mim com
prepotência ou complacência, tratando-me como um igual cuja falta maior seria a
escassez de experiência e não o potencial formal. Anui, evidentemente. Sugeri,
inclusive, que se poderia ir mais longe, que seria possível executar-se um
maior desdobramento no que propunha. Acenou afirmativamente. Por esta hora
devia estar a apresentar o basco; ele, não eu – eu iria ser um espectador.
Deixáramos para trás o edifício onde se tinha previsto o nosso encontro.
Interpelávamo-nos agora estacados no interior de um outro a aguardar, com a pouca paciência a
que podíamos apelar, pela chegada do elevador. Nem eu nem ele estávamos dispostos
a galgar os degraus até ao quarto andar de mote próprio se podíamos muito bem
esperar que uma máquina o fizesse sem o menor esforço. Posto isto, para
concluir, o que tem não está nada mau, está bom e interessante; agora é
continuar e ir angariando progressos – disse-me, informando-me que estava
concluída a conversa do motivo que em primeira instância me conduzira à sua
presença, naquele espaço tão específico e singular, tão prenhe de significados.
Saíamos do elevador em direcção à sala reservada à conferência onde o actor
principal já aguardava pelo seu colega de carreira, que o introduziria aos
presentes. Reconheci poucas faces e depois de uma informal e mútua pancada nas
costas ou no ombro, a comunicar um até já, dirigi-me a uma cadeira vazia e
ocupei o lugar situado algures na segunda ou terceira fila, falha-me a memória;
na segunda, estou certo disso.
O ‘chefe’ abandonou a sala. Compromissos
inadiáveis exigiam a sua presença. Já lho disse, anda a abusar; se entrou a
cem, saiu a trezentos. O senhor basco, é verdade. Um slide show incontável,
mesmo que eu me tivesse dado ao trabalho de os contar desde o primeiro.
Contudo, não lhe estou a fazer justiça. Profissionalíssimo muito além do que a
profissão lho exigia – e nós, já agora, que assistíamos com a atenção que fez
por merecer. De quando a quando baixava os queixos de forma a que o meu campo
de visão abrangesse os marcadores do meu relógio afincadamente preso ao pulso.
Parecia-me invariavelmente, ilusão de um tempo dito psicológico, que os ponteiros
se encontravam na mesma posição, preguiçosos em querer trabalhar, mais
preguiçosos do que eu, o que não é dizer pouco. Já sei, se me ouvisses dizer
isto censuravas-me com o olhar e ficarias meia hora a dissertar sobre o que é a
preguiça, o que devia e não devia fazer, como exagerava e em simultâneo não
exagerava. Calar-te-ia com um beijo. Não resultaria. Logo voltarias à carga, fizesse
eu o que fizesse, dissesse o que dissesse. Tens o teu timing interno que respeitas
escrupulosamente, só findarias quando a tua vontade determinasse que desejava
ficar por ali, mais do que satisfeita e saciada. Teimosa, sabes? Nem assim
deixaria de te dar esse beijo, porque sim. Teimosos os ponteiros. De nada
valeria acelerá-los artificialmente, o tempo é-nos exterior e está-se
marimbando para o que o meu relógio diz ou deixa de dizer; o meu e o de todos
os outros. Em tom coloquial confidenciei para mim próprio: tens que te aguentar
à bomboca. Pelo menos a temática era interessante e o facto de ser falada em castelhano
sempre quebrava um pouco com o ritmo pardacento de um dia inteiro, como o são
quase todos os dias regulares, a escutar e a verbalizar palavras e frases no
nosso português; não me entendam mal, aprecio muito e tenho todo o respeito pela
nossa língua materna. Nisto voltavas a mim e eu a esforçar-me por ouvir o
senhor vindo propositadamente da metrópole de Barcelona. Era a minha vez de
teimar e disse-te que ali não era o teu lugar. Curiosamente acabei por
constatar que até seria, contudo acabei por ficar morbidamente feliz por ali
não te encontrares – de não te encontrares a sério, fisicamente, e não como
produto da minha mente –, evitando-se assim que o nosso mundo profissional nos
colocasse numa posição com a qual não me quero debater. Devagar, a passo de
caracol engripado, a conferência avançou para o almejado término. O ‘chefe’
regressou, pontual que nem um britânico, cabia-lhe ainda a tarefa de moderar o
debate que se seguiria ao que fora comunicado. A minha satisfação tornou-se
irreprimível assim que ele atravessou aquelas portas. No máximo mais trinta
minutos, quarenta, dado que o senhor basco permanecia imerso nas suas palavras.
Duas horas e quarenta e cinco minutos após ter entrado, juntamente com o senhor
emérito, naquela sala fui ao rubro ao ouvir os primeiros aplausos. O basco
agradecia, como obrigam os bons modos. Deu-se início ao debate, ou, por outra,
o senhor emérito deu início ao debate – ao abrir das hostilidades, como eu
prefiro denominar este momento preciso. Um ou dois quartos de hora e estaria
livre daquela cela, voltaria a ser um indivíduo livre a fazer o quer que seja
que os indivíduos livres façam; o que amiúde, convenha-se, não é muito. Todos
erguidos e prestes a abandonar o local, eu entre os mais desejosos, lá nos
fomos paulatinamente movimentando. O emérito e o basco conversavam
entusiasticamente, bati levemente no blazer do emérito e à saída da sala
saudei-o em despedida com uma espécie de movimento de mão em continência. Em
retorno, recebi a palma de uma mão levantada e um olho piscado; ainda não satisfeito,
apontou-me o dedo e, alto, depois falamos, hã? Claro, retorqui. Teimosa, podes
voltar? Desço pelas escadas para compensar a cobardia de, antes, não as ter
subido. Tento sair pelas traseiras, o senhor segurança diz que não, que a porta
está já trancada e que não tem chave, que terei de sair primeiro para o passeio
da avenida e só depois de umas dezenas de metros poderei reentrar, agora pelo
portão principal, de encontro ao edifício onde inicialmente estivera, o tal do
sétimo piso, descer alguns lances de escadas ao encontro do automóvel. Podes
regressar, teimosa? Sorrio. Por dentro e por fora.
Apreciava com antecipação o
regresso ao teu amplexo, ao teu beijo morno. Era tarde e anoitecia a olhos
vistos. Pensei que quando chegasse a ti já o lusco fusco teria abandonado o céu
e o manto de estrelas reinaria por cima das nossas existências. Coloquei a
chave na ignição, esfreguei a testa cansada daquela tareia de intermináveis
horas passadas naquele lugar. O motor indicou-me que estava pronto, liguei os
médios como sempre faço quando entro ou saio da garagem do edifício. Fiz fé de
que o carro, a par de mim, conhecia o trajecto a percorrer. Marcha-atrás,
primeira, quero-te; tanto…
Adormeceste no sofá, agarrada ao
meu braço e com a cabeça a ele encostada, praticamente logo após termos
jantado. Senti que estavas exausta, por mais que me tentasses distribuir
sorrisos e piscadelas de olho marotas, por entre o manuseamento dos talheres, dos
copos e de outros que afins. Não contrariei a tua vontade, permiti julgares que
me iludias – embora, no âmago, soubéssemos os dois que apenas teatralizávamos,
como dois fantoches encantados a representar os seus papéis numa caixa e no
seio de um mundo de fantasia, respeitando-nos mutuamente, a nós e ao que somos;
temos muito para crescer, não o ignoramos porque não somos tolos nem ingénuos,
mas tal faz parte e aceitamo-lo serena e placidamente, ouso até asserir que o desejamos
com o tamanho das nossas forças que individuais se unem para a concretização de
objectivos comuns e partilhados. Confesso-te, já sinto a dormência do meu braço
a alastrar e a tornar-se inconveniente para além do aceitável. Pelas minhas
contas, grosso modo, mais de três horas se foram desde que ligaste a minha
televisão, que agora também é tua, e poisaste a cabeça no meu ombro, encolhendo
o mais do resto do teu adorável corpo para que coubesses, comigo, semideitada
nas almofadas do sofá. Não lhe ligaste peva, à televisão. Era indiferente o
canal sintonizado, pois era-te indiferente qualquer conteúdo que o ecrã lcd pudesse
projectar nos teus olhos de castanho-mel. O cansaço dominou-te e venceu –
embora só por hoje, digo-te eu que te chamo minha. Pesa-me o coração por ter de
te despertar, mas quero-te mais confortável, desejo que o teu sono aconteça
onde deva ser para que de facto repouses a fim de que, mais tarde, te reergas com
energias plenamente recuperadas ou, pelo menos, lá perto. Tens um sono bem
pesado, sabes criatura teimosa? Ignora o ruído da televisão, cujo volume,
apesar de tudo, já diminuí após uma prolongada batalha para me apoderar do
comando sem te perturbar, ignora o disparo violento e sonoro da ventoinha do
meu portátil, ignora a minha tosse teimosa por causa de uma garganta irritada,
questiono-me se não ignorará inclusivamente todo o mundo excepto aquele feito
de sonhos para onde te levou. Quase não sinto o braço e só devido a um esforço
mais do que considerável é que continuo a conseguir teclar com a mão esquerda;
com a direita aproveito para afagar o teu cabelo, para tocar levemente o teu
rosto. É imperativo acordar-te, desculpa-me. Quem me dera que houvesse outra
forma, mas não há. Tenho mesmo que o fazer, por mais que deteste, que abomine a
ideia. Antes, porém, sussurro-te um desculpa do qual nunca terás conhecimento.
Provavelmente dirigi-o a mim, não estou certo. Já não estou certo de nada; ou
antes, estou mas de pouca coisa. Começo igualmente a ficar baralhado e sinto
areia nos olhos.
É com agrado que estou de
regresso aos textos mais longos. Devo-o a ti. Estou-te grato, sim. Talvez um
dia, quem sabe, te fale deste blogue. Não hoje, isso é garantido. Já dormes
novamente e no mobiliário apropriado, pelo que fico satisfeito. Não te zangaste por ter
interrompido o teu sono. Esfregaste teimosamente um olho até à sua coloração
avermelhada se tornar mais acentuada e sorriste para mim. Tentaste regressar à
posição em que estavas, o que entendi mal agarraste com as duas mãos o meu
braço. Não permiti, no entanto, que poisasses a cabeça. Cama, imperativo mas
delicado, transmiti-te. Zombie lá caminhaste, trôpega, deliciosamente ensonada
e sem jeito nenhum a andar. Senti ainda mais ternura por ti. Num fôlego
ergui-me e servi-te de amparo até ao quarto, onde te deixei sentada na cama
para vir terminar estas linhas e desligar todos os aparelhos que, teimosos como
tu, pareciam ter vontade em ficar ligados. Falta só encostar a tampa deste
portátil. Fui observar-te, já dormes, tão sossegada como canta o Palma, e um
novo assomo de ternura percorreu todo o meu corpo. Falta encostar a tampa
deste. Não demora. Já me junto a ti.
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